A água como espaço de manifestação do fugaz

artigos Edição 37

The water as a space of the manifestation of the ephemeral

PEREIRA, Andreia; ALMEIDA, Teresa; LOUREIRO, Domingos. A água como espaço de manifestação do fugaz. In: Aguarrás, vol. 8, n. 37. ISSN 1980-7767. São Paulo: Uva Limão, JAN/JUN 2021. Disponível em: <http://aguarras.com.br/aguafugaz/ ‎>. Acesso em: [current_date format=d/m/Y].

Resumo: Em incessante mutabilidade, a água é um elemento transitório cuja durabilidade e solidez da matéria se verifica inconstante: um curso de água em fluxo permanente, um suave nevoeiro que cobre as paisagens, o gelo que se metamorfoseia. Fonte essencial de vida e indissociável da sua envolvência, o homem vivencia este elemento nas múltiplas formas e estados em que se apresenta e por eles constrói vocabulários.

Naturalmente, este elemento emergiu na arte de todas as culturas, cujas representações da água estruturam-se como referente simbólico, narrativo, metafórico e enquanto matéria. Mediante enquadramentos discursivos concretos de um conjunto de artistas: William Turner, Caspar David Friedrich, Claude Monet, Robert Smithson, Richard Long e David Buckland, é apresentado como as dimensões visual, subjetiva e experencial são construídas a partir e com a água, em encadeamentos que não só espelham na sua superfície significados no observador mas que também o emergem na profundidade do significado.

Palavras-chave: água, representação, experiência, sensação, subjetividade

 

Abstract: In incessant mutability, water is a transitory element whose durability and solidity of matter is constant: a stream of water in permanent flux, a soft fog that covers the landscapes, the ice that is metamorphosing. Essential source of life and inseparable from its surroundings, man experiences this element in the multiple forms and states in which it presents itself and builds vocabularies of them.

Naturally, this element emerged in the art of all cultures, whose representations of water are structured as a symbolic, narrative, metaphorical reference and as a matter. Through concrete discursive frameworks of a group of artists: William Turner, Caspar Friedrich, Claude Monet, Robert Smithson, Richard Long and David Buckland, it is presented how the visual, subjective and experiential dimensions are built from and with water, in chains that not only mirror meanings on the surface in the observer, but that also emerge in the depth of the meaning.

Keywords: water, representation, experience, sensation, subjectivity

 

A água como metáfora da existência

A água, elemento essencial para a sobrevivência humana, assume-se com a sua aparente simplicidade numa das mais complexas representações da existência humana, manifestando-se consecutivamente ao longo da história da arte e da filosofia.

Esta substância poderosa reune em si um conjunto de relações que são estabelecidas em conformidade com a sua fisicalidade e conexões que representa, pois é simultaneamente um vasto e imenso oceano e uma leve e frágil gota. Um corpo volumoso e uma presença transparente. É turbulenta ou calma. É um espelho que reflete e metáfora de emoções: leva consigo angústias e traz esperanças. É imprevisível e múltipla, sempre a mesma e sempre diferente. Não tem forma e, no entanto adapta-se a todas as formas. (FLUENCE, 2015)

À água límpida, o Homem reivindicou o valor de pureza, um conceito profundamente enraizado na tradição cristã pelo batismo, segundo a qual a água purificada concede ao receptor o nascimento ou seja, a imersão na água possibilita a renovação, o retorno ao estado puro. (EOM, 2014) A ideia de pureza associada à água é mencionada por Gaston Bachelard (1884- 1962) em “Water and Dreams – An Essay on the Imagination of Matter” através do espelho de água, segundo o qual o seu uso proporciona uma imagem mais natural, pura, assim como concede uma certa inocência ao orgulho de quem se contempla. Contrariamente, um espelho tradicional não só impede quem se mira de atravessar a imagem como aprisiona a figura numa forma geométrica.

Numa visão científica a água pode ser modelada e quantificada; como uma experiência é algo que é socializado e qualificado, gerando significados e sensações. Desta forma, são inúmeros os exemplos de artistas que trabalharam a partir da água, em diferentes aproximações, desde a sua representação mimética, ao referente simbólico, até à noção de abstração. Obras isoladas, séries de obras, ou uma carreira, são vinculadas à natureza precária, múltipla, complexa, contingente, imersiva e fluida da água. (FlLUENCE, 2015; HASTRUP, RUBOW, 2014)

Assim, vários autores dedicaram um espaço primordial à água, ao longo dos seus percursos, manifestando forte ligação com ela, e em muitas das suas produções. Espaço de mapeamento, de inventividade e narrativa, são diversos os diálogos criados com este elemento múltiplo. Do ponto de vista da representação, autores como Vija Celmins (1938), Gerhard Richter (1932), Claude Monet (1840 – 1926), Alfred Sisley (1839 – 1899), entre outros, dedicam ou dedicaram muitas obras a este modo de associação. Filosoficamente, a água assume nas obras de Caspar David Friedrich (1774-1840) uma relação com o sublime ou com o religioso e por William Turner (1775-1851) surge como reflexo de uma experiência incorporada. Indícios de memória aparecem latentes nas obras de Hiroshi Sugimoto (1948), Roni Horn (1955), Song Dong (1966), entre outros. Pela ecologia, o tratamento da água é também um dos pontos fortes, por artistas como Olafur Eliasson (1967), Richard Long (1945), Diane Burko (1945) e Mariele Neudecker (1965) com uma preocupação em torno das alterações no meio ambiente.

Desde o final do século XX que se assiste a exposições que refletem o lado criativo da água e o seu amplo significado. Em 1998 foi realizada a exposição “Sea Change: The Seascape in Contemporary Photography” no Centro de Fotografia Criativa da Universidade do Arizona. Curadoria de Trudy Wilner Stack, contou com a participação de dezanove artistas que centraram a sua atenção nas qualidades da água, ar e luz em concordância com a localização física e geográfica de cada artista, seja em continente, na costa, no litoral de modo a apresentar pela fotografia essa heterogeneidade de perpectivas do mar. A exposição contou com nomes como: Roni Horn, Hiroshi Sugimoto, Michael O’Brien (1948), Stuart Klipper (1941), Fernando La Rosa (1943), Tom Millea (1944) e Randy West (1960). (ICP, n.d)

Em 2003 no Museu de Arte Contemporânea na Austrália, foi realizada a exposição “Liquid Sea” com a curadoria de Rachel Kent. Nesta exibição integraram obras de Christine Borland (1965), Tacita Dean (1965), Elisa Sighicelli (1968), Zhu Ming (1972), Louis Boutan (1859-1934), Joyce Hinterding & David Haines (1969) no entrelaçamento de áreas científicas, artísticas, de museologia e design de forma a criar narrativas com conteúdos aquáticos. (MCA, n.d)

Em 2005 no Museu de Arte Contemporânea no Arizona, o curador Marilu Knode organizou a exposição “Water, Water everywhere…” que contou com a presença de quinze artistas que refletiram sobre as diferentes vertentes que a água é apresentada na cultura, foram entre estes: Laura Horelli (1976), Sabrina Mezzaqui (1964), Tony Feher (1956-2016), Robert Gober (1964), Song Dong, Stan Douglas (1960) e Carrie Yamaoka (1957). (BALTICPLUS, n.d)

Em 2007 no Instituto de Arte Moderna em Brisbane na Austrália, a exposição “Grey Water” com curadoria de Robert Leonard colidiu o tema da pureza da água e da essência nacional numa reflexão pensada através de obras de autores como Roland Fischer (1958), Lawrence Weiner (1942), Abie Jangala (1919-2002), Peter Greenaway (1942), Zhang Huan (1965), Teresa Margolles (1963), Marian Drew (1960), Bill Culbert (1935), Lawrence English (1976) e Toshiya Tsunoda (1964), Roni Horn, Rosemary Laing (1959) com Stephen Birch (1961) e Jun Nguyen-Hatsushiba (1968). (IMA, n.d)

A pluralidade e o interesse do assunto, tem originado publicações recentes sobre a água, o livro “Água: Porto / Aigua: Barcelona” (2012) de António Quadros Ferreira, resulta de uma investigação teórica suportada pela prática artística cujo tema principal é a água. Um tema de especial interesse para artistas que trabalham este elemento rico a partir das diferentes vertentes do conhecimento: como a estética, o simbolismo, a poética, a tradição pictórica oriental, a ecologia, a performance, a pintura e a escultura. (FERREIRA, 2013)

Assim, percebe-se a abrangência dos argumentos que levam os artistas a tratar a temática da água, pelo que, uma viagem pela história da arte, nos permite compreender a relevância do assunto e a complexidade das relações estabelecidas com ela.

 

A água como tema nos movimentos artísticos

A imaginação coletiva produzia representações do mar que estavam profundamente marcadas por interpretações religiosas, especialmente a de Génesis, como a história da criação e a do dilúvio. Incapaz de se manter dentro dos seus limites, o vasto oceano, personificava toda a desordem e retorno temporário ao caos do princípio. Segundo visões religiosas, o Criador traçou uma linha divisória para separar os dois corpos de água e assim criou o céu e o mar. Por sua vez, o líquido infinito de ondas sem costa, representado como o dilúvio, surgiu como forma de punição e castigo face aos pecados dos homens. (CORBIN, 2010)

A representação da água tem sido frequente ao longo da história da arte, no entanto, no contexto deste artigo, a pesquisa é iniciada no Romantismo, quando a paisagem adquire uma nova autonomia e apresenta-se antropomorfizada, isto é reflete o íntimo de quem observa.

Impulsionada pelo desenvolvimento do Iluminismo, as representações perigosas do mar deram lugar à criação de imagens do oceano que procuravam uma maior ligação a ideias de espiritualidade e de eternidade. No livro “Le territoire du vide: L’Occident et le désir du rivage” de Alain Corbin, o autor evidencia a costa como o lugar privilegiado de autodescoberta para os românticos, no confronto com os elementos da terra, o ar e a água. Diante da infinitude do oceano, os seus devaneios eram envolvidos por estes elementos na procura de significados sobre a sua existência. Numa altura em que os modos de andar e vaguear eram renovados, a costa e o mar tornaram-se lugares de contemplação, descanso e lazer. (FLUENCE, 2015)

O sentimento com o oceano foi analisado pelos pintores do Romantismo através de representações mais diretas e constantes do mar. Baixaram a linha de horizonte e posicionaram o espectador ao nível da água, face a temas dos quais predominavam a figura do barco no meio da tempestade e a questão do afogamento, que teve especial atenção na Europa no final do século XIX. (CLARKE, 2010)

A pintura “The Monk by the Sea” de 1808-10 (figura 1) expõe o estado emocional de Caspar Friedrich, que invoca a paisagem como lugar de exteriorização desse mundo interior. (POLLITT, 2015) Numa composição simples, Friedrich cria um plano inferior em forma triangular para a costa e um plano superior para o céu branco luminoso, os quais servem de diagonais para direcionar o olhar à imensidão do horizonte e unir a costa, o mar e o céu. (KOERNER, 2009; SCHAPIRO, 1997)

Figura 1. Caspar David Friedrich, The Monk by the Sea, 1808-10, óleo sobre tela, 110 x 171.5 cm.

A pequena figura vertical, o solitário e frágil monge, observa o mar infinito totalmente envolvido nos seus próprios pensamentos. Neste ato contemplativo há um sentimento de caminho percorrido até aquele momento, da vida que se sente no constante fluxo das ondas, do som que elas produzem quando batem nas rochas, na vontade de cruzar o mar mas ciente de que ele nada tem para amparar a vida, da observação das nuvens que atravessam o céu e do som pontual produzido pelos pássaros. (JEH, 2013)

A composição integra três assuntos repletos de mistério: o monge, a duna e o mar- representado como uma massa densa, de um profundo verde escuro e delineado a partir do horizonte. (WYSS, 2008) Espelho dos seus sentimentos este corpo líquido está sem vida, praticamente imóvel; as ondas são subtilmente anotadas em pequenas linhas e a textura leve e delicada transparece a quietude do mar em cores frias e sombrias, de modo a enfatizar a solidão que percorre o monge.

A localização espacial da figura acentua a ideia de transcendência que, assente num lugar de fronteira e no ponto mais alto do primeiro plano, vive um momento de iluminação interior, de passagem da existência terrena. Pelo imenso céu azul-acinzentado e o mar profundo, Friedrich convida o observador a desempenhar o papel do monge, colocando-se diante da pintura para sentir o que o autor sente, para ver o mundo como ele o vê. (KOERNER, 2009; SCHAPIRO, 1997; WYSS, 2008)

O pintor inglês William Turner na sua prática pictórica demonstra a experiência do espaço por um sujeito que interage fisicamente com o lugar, ao compreender a experiência vivida na união entre movimento e percepção. Esta energia é libertada em gestos dinâmicos, arranhões, esfregões e pinceladas de cor amplas que traduzem o envolvimento das suas emoções e das forças da natureza. Numa performance dramática e gestual, Turner dá ênfase à dimensão subjetiva e experiencial da pintura de paisagem, explorando o poder transcendental do mar e por ele procura demonstrar o contato físico, moral e estético. (IBATA, 2018; MONKS, 2010)

A pintura “Rockets and Blue Lights (close at han) to warn Steamboats of Shoal Water” de 1840 (figura 2) narra uma tempestade marítima perto de uma cidade portuária inglesa, na qual a natureza e o homem são colocados um contra o outro. Próximos de águas rasa, os sinalizadores explodem no céu para alertar os navegadores. (THE CLARK, n.d.)

Figura 2. William Turner, Rockets and Blue Lights (close at hand) to Warn Steamboats of Shoal Water, 1840, óleo sobre tela, 92.1 x 122.2 cm.

Numa imagem quase abstrata, o mar é apresentado no seu esplendor por pinceladas em diversas direções. Perseverante em lançar o navio para todos os lados, as ondas puxam-no para baixo, empurram-no com mais destreza para o lado esquerdo e erguem-no a ponto de o atirar para os céus. No canto inferior esquerdo, as figuras observam o momento à espera do desenlace da cena, contrariamente as figuras próximas do centro da composição são registradas como um apontamento e parecem antes fazer parte do mar.

Envolvida no fumo, a água apresenta-se nesta pintura em diferentes formas: pelo corpo denso e furioso do mar que perde espessura à medida que se aproxima do canto inferior direito, nas sucessivas ondulações, pela espuma e o spray do mar. Numa composição orientada pelo mar turbulento, as camadas de tinta finas e espessas sobrepõem-se de modo a revelar a essência da água.

Em Turner, o mar permitia a expressão do seu fatalismo e no recurso às forças da natureza, a obra reflete a compreensão do mundo por um corpo imerso na experiência, que vê e sente. O esplendor com que a água se apresenta na composição é reflexo desse conhecimento incorporado. (MONKS, 2010)

Com a introdução do Impressionismo por volta de 1860, o ponto de vista do espectador é alterado assim como a sua emoção e contemplação perante o observado, que adquire um novo tratamento uma vez que a criação pictórica comprometia-se com o visível. Um momento específico do dia era para o pintor uma “experiência de ver” (SCHAPIRO, 1997, p.12); as constantes mudanças de luz e de atmosfera proporcionam na paisagem novos contrastes e cores assim como alteram as aparências dos objetos. Desta forma, as sensações foram apuradas “a sensação do sol e o ar quente, fresco, seco, ventoso ou imóvel; as qualidades táteis da água, da areia, do solo, da relva e da rocha, as sensações corporais de caminhar, remar ou dançar” (SCHAPIRO, 1997, p.20).

No século XIX a ideia de instantâneo ganhou novo estatuto e o pintor francês Claude Monet foi um dos principais pintores cuja criação pictórica refletiu esse interesse. No conjunto de paisagens aquáticas “Nymphéas” iniciadas em 1897, o pintor apresentou um novo enquadramento da Natureza ao revelar o brilho, a beleza e a fragilidade que se pode encontrar nela. (MONETPAINTINGS, n.d) Em “Nymphéas” de 1906 (figura 3), Monet cria uma visão única e bela ao concentrar em toda a área compositiva a superfície da água. A lagoa de nenúfares em Giverny, criada pelo artista, era espelho de todas as transformações atmosféricas e de luz ocorridas no espaço, produzindo variados reflexos na água. Monet representou diretamente no plano vertical o que estava a observar no plano horizontal, ao centrar o seu foco muito próximo da superfície da água de modo a isolar uma parte do lago com os seus nenúfares. (SCHAPIRO, 1997)

Nesta obra é possível observar todos os estímulos criados pela água, das combinações de luz e sombras obtidas, concretizadas em pinceladas curtas e objetivas de diferentes cores, de modo a captar o momento fugaz, dado pela transitoriedade da luz incidida na água e nos restantes elementos. Assim como acontece com um espelho ou com o olho, as árvores que se encontram ao redor do lago surgem refletidas na água e o tratamento dado às plantas aquáticas permite que se distinga o azul do céu do azul da água. (SCHAPIRO, 1997)

A contínua alteração registrada pelo espelho de água é o motivo da pintura de Monet e por ela o artista cria uma experiência visual de envolvência, imersiva e meditativa ao colocar o observador diante de um momento muito concreto dos seus jardins em Giverny. (MONETPAINTINGS, n.d)

Figura 3. Claude Monet, Nymphéas, 1906, óleo sobre tela, 90 x 93 cm.

Embora seja do conhecimento a representação da água em obras posteriores ao período do Impressionismo, o avanço cronológico que se efetua até à Land Art, dá-se pela criação de obras em relação direta com a água.

A par do tradicional género paisagístico, em meados de 1960 surge nos Estados Unidos e na Europa o movimento artístico Land Art. Opondo-se à cultura consumista e com uma vertente ecológica adjunta, as obras da Land Art expandiram os seus territórios para a paisagem, numa localização distante e efémera, capaz de exibir obras organizadas em grandes escalas, com elementos encontrados no meio natural desde água, gelo, pedras, ramos, folhas, entre outros. O entendimento da obra era acordado em relação direta com uma característica concreta do lugar circunscrito, sendo que a experiência ou ação completa do observador ocorre quando ele percepciona a obra em conformidade com o seu campo visual e interliga fatores de espaço, tempo e luz. (CHEETHAM, 2018; SAWADA, 2011)

Os artistas abandonaram o atelier e os tradicionais espaços de exposição apropriando-se de materiais simples e humildes, como mostra o trabalho “Broken Circle” de Robert Smithson (1938-1973) datado de 1971. Obra in situ, circunscreve-se num local muito específico, com vestígios de alterações ocorridas, resultante de mineração ou resíduos industriais. O deslocamento, característica preliminar da Land Art, é apoderado por Smithson para ajustar a um pensamento poético, transmitido pelo encadeamento entre a narrativa e a paisagem. (MARTINS, 2016)

Coadunando princípios da entropia, assentes em aleatoriedade e desordem de um sistema, “Broken Circle” situava-se numa pedreira de areia e concretiza a materialização imaginativa do lugar por um desenho criado na periferia, na qual o solo e a água contaminam-se e interagem em formas poligonais. A atenção é dada exclusivamente a “Broken Circle” por figurar como metáfora do entrelaçamento entre arte e indústria, natureza e cultura, que os próprios braços do círculo procuram sugerir, estabelecida em concordância com as filosofias orientais. A água doce em constante alteração pelos equipamentos de mineração e as frequentes drenagens exercem função na obra de arte, criando deste modo um elo relacional entre a paisagem e o homem. (MARTINS, 2016)

A poética do artista estabelece-se assim no espaço entre, na transição dos elementos arenosos e aquosos do círculo e fundindo afeto e percepção, na convocação de uma envolvência física e de uma experiência próxima do vínculo. (SHANKEN, 2013; MARTINS, 2016)

Sem um posicionamento quanto ao lugar e ao monumentalismo tão acentuado como outros artistas da Land Art, o artista britânico Richard Long constrói um vocabulário pela marcação direta da água e serve-se da paisagem para fortalecer, desenvolver e expandir as relações entre o homem e o mundo. Numa criação que manifesta traços fenomenológicos assentes na valorização da experiência sensorial, “Waterfall Line” de 2000 evoca a água através da lama, como material de registro direto, expondo expressões e marcas da performance gestual.

Na parede preta da galeria, a pintura é feita com lama branca do rio, numa referência à fluidez e vida do rio e do encontro de um corpo inserido no espaço e no tempo, em diálogo com os fenómenos da natureza e do cosmos. A energia física é expressa nos gestos rápidos e dinâmicos que projetam a lama com velocidade, no entrelaçamento de um conjunto de padrões de linhas circulares feitos pelos dedos e as mãos e dos salpicos que atingem a faixa preta maior, que batem com força no chão e saltam. (MANCHESTER, 2005)

Num período mais recente, muitos artistas têm colidido a sua produção artística com uma vertente ecológica. Entendidos em ação recíproca, as mudanças geológicas e de clima têm ocorrido sem precedentes e um dos problemas abordados pela ecologia é o rápido degelo, que proporciona o consecutivo aumento do nível da água do mar e da sua temperatura.

Dentro deste contexto, um conjunto de artistas sente a necessidade de ter um papel interventivo. O artista inglês David Buckland (1949) desenvolve uma prática artística em profunda relação com estas questões. No recurso a meios tecnológicos, projeta no Ártico instalações que consistem em mensagens de alerta para os problemas futuros, adjacentes das mudanças climáticas. Numa preocupação em torno do aumento da temperatura do planeta e o consecutivo degelo do Ártico, Buckland procura através de projeções de texto e do vídeo trazer uma camada emocional, transformando a informação de modo a obter-se “a presença física e emocional de um objeto tátil”. (BUCKLAND, n.d; RING, 2007) Neste sentido, depois de selecionar uma área suficientemente escura para que a projeção seja possível, ele projeta no gelo ou no mar de gelo metáforas construídas através de mensagens como “ Burning Ice” ou “Discounting the Future”. Recorre também a imagens de mulheres grávidas e rostos de recém-nascidos para que o gelo traduza metade da mensagem com o significado assente na imagem ou no texto e deste modo indicar a urgência atual. (BUCKLAND, 2017)

Em 2010, o artista projetou a imagem de uma mulher grávida nua a caminhar “Pregnant Woman”, para simbolizar as esperanças e medos sociais. Enquanto caminha pelas paisagens congeladas da Gronelândia, esta figura surge como uma espécie de premonição, entre a luz e a sombra, o artificial e o natural, o tecnológico e o primitivo. (BUCKLAND, 2017)

Símbolo da vulnerabilidade e promovendo o cuidado, a figura da mulher carrega em si o peso emocional, desta relação simbiótica do ser humano e o seu habitat ao representar a nossa responsabilidade para com as gerações futuras e para atual mudança não biológica. Metáfora da vida, da cultura e do tempo, o artista recorre à mulher grávida para reformular o envolvimento do público, ao criar uma simbiose emocional com o derretimento glaciar, pois quando a criança atingir a idade da mãe os glaciares já se terão extinto. Uma ideia de memória paira desta forma sobre esta obra, o gelo em toda a sua forma e vivência está a perder-se e a sobrarem dele vestígios. (BUCKLAND, 2017, 2012, 2008)

Nesta breve passagem pelos movimentos artísticos, percebemos que a água, surge em toda a sua dimensão e no panorama heterogéneo em que se apresenta, ao longo do período de tempo mencionado. Foi sendo assunto e material enquanto reflexo de experiências, sentimentos profundos e de preocupações constantes.

 

Considerações Finais

A amplitude com que a água se apresenta, mostra a diversidade e a importância deste elemento. Usada como metáfora da vida, encontrou o seu caminho nas diferentes áreas: a literatura, a poesia, a filosofia e a arte. Inicialmente ligada a tradições religiosas, a água, ao longo da história da arte, adquire a sua própria autonomia e passa a ser tratada como sujeito, como significado, significante, meio ou material.

A essência da água é sempre a mesma, contudo a sua fisicalidade serve na construção de inúmeras relações que oferecem soluções e aplicações distintas aos artistas. Este elemento tem a aparência de ser o mais semelhante ao humano, e ao longo da história da arte não passou despercebido aos artistas, sendo por eles apropriado e referenciado na tradução de significados profundos.

Resultado de enquadramentos discursivos próprios, a água emerge em significado, intrínseco ao sujeito e à sua experiência, num determinado tempo e lugar, de tal forma que partindo da natureza transitória da água podemos perceber que ela não só oferece uma ontologia do presente, mas que reune a memória do passado e a possibilidade do futuro.

 

Referências

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