Nós, latino-americanos: mundos possíveis através da Arte

artigos Edição 38

We, the Latin Americans: possible worlds through Art

ARRUDA, Maria Isabel Xavier de. Nós, latino-americanos: mundos possíveis através da Arte. In: Aguarrás, vol. 8, n. 38. ISSN 1980-7767. São Paulo: Uva Limão, JUL/DEZ 2021. Disponível em: <http://aguarras.com.br/nos-latino-americanos/>. Acesso em: [current_date format=d/m/Y].

Resumo

Neste artigo pretende-se desenvolver uma reflexão acerca do Ser latino-americano e suas potencialidades através de representações artísticas. Observar o desenvolvimento do povo latino-americano e pensar em uma possível unificação através do imaginário artístico. Explorando áreas da sociologia, antropologia e até linguística para que seja possível uma compreensão abrangente e geral sobre o tema. É o início de uma utopia latina.

Palavras-chave: América Latina. Arte latino-americana. Arte. Utopia. Arte contemporânea.

Abstract

This article intends to develop a reflection about Latin American and its potency through artistic representations. To observe the development of the Latin American nation and begin to think about a possible unification through the artistic imagination. Exploring areas of sociology, anthropology and even linguistics so that a comprehensive and general understanding of the subject is possible. It is the beginning of a Latin utopia.

Key words: Latin America; Latin american art; Art; Utopia; Contemporary art.

 

Introdução

Temos, na América Latina, países distintos, cada qual com sua cultura possuindo em comum de maneira concreta, um espaço geográfico e um título de Terceiro Mundo. Valdés (2011) coloca que até mesmo o fato de chamarmos “América Latina” é arbitrário e escolhido por um Outro fora de nós. Temos entre os países que a compõem, formações e histórias colonizatórias diferentes e o autor acredita que a definição de América Latina por si só é instável, mas pensar a união e unificação a partir de pontos similares é de grande valia e fortalecimento para transformar um povo de subjugado a emancipado, mesmo que isso se dê primeiramente em seu imaginário. A pretensão não seria uma unificação radical mas sim, encontrar pontos em comum para que possamos primeiramente, nos entendermos como capazes de Ser.

Darcy Ribeiro (1986) nos lembra as semelhanças e diferenças entre os povos da América Latina: não temos uma estrutura sociopolítica unificada, muito menos coexistimos de maneira ativa, nossa unidade geográfica tampouco serviu para nos identificarmos e tudo isso acontece, segundo o autor, devido às diferentes formas as quais as sociedades desenvolveram-se. Vivemos como se fôssemos arquipélagos, ilhas que se comunicam de maneira distante. Galeano (1978, p.244) partilha essa ideia de ilhas “[…] na atualidade, qualquer das corporações multinacionais opera com maior coerência e senso de unidade do que este conjunto de ilhas que é a América Latina, desgarrada por tantas fronteiras e tantos isolamentos.” Outro ponto que nos afastaria seria o linguístico porém este também é observado com muito otimismo por Ribeiro (1986) quando aponta que o castelhano falado na América Latina possui poucas diferenças entre si, como se fossem somente sotaques regionais, o mesmo ocorre com o português no Brasil, se observado em relação às línguas das nações colonizatórias que seriam muito mais distintas em seu país de origem do que o nosso português brasileiro. Os ingleses, espanhóis e portugueses não conseguiram assimilar todos territórios e dialetos, criamos assim, uma linguagem própria. Nesse sentido, nos atemos ao Brasil por um breve momento e pensemos no movimento da linguagem.

Possuíamos uma linguagem própria, com memória, história e sentido local que tentou ser abafada pela linguagem do colonizador. Esse choque e resistência foi sentido também pela linguagem que queria ser imposta como oficial, houve como uma troca de resistências. No encontro entre as distintas maneiras de falar, a dos negros, dos indígenas e dos portugueses, percebemos que todas de alguma forma, tentaram permanecer. Seria interessante pensarmos em uma língua “brasileira” ao invés de “português brasileiro”, isso porque criamos a nossa própria linguagem apesar de todas tentativas de silenciamento e jogos de poder, por exemplo, quando no século XIX a gramática oficial imposta divide o Brasil entre os que falavam português corretamente e os que não falavam.

Sem nos estendermos muito na questão linguística, somos capazes de perceber como o projeto de colonização no Brasil e na América Latina, tinha como pretensão um apagamento histórico e cultural dos nativos. Esse projeto, porém, não se concretizou completamente, visto que hoje somos uma cultura que, apesar de certa dependência e mentalidade do estrangeiro vemos uma urgência da diferença e um aclame pela nossa subjetividade e particularidade.

Por cima das linhas cruzadas de tantos fatores de diferenciação- a origem do colonizador, a presença ou ausência e o peso do contingente indígena e africano e outros componentes-, o que sobressai no mundo latino-americano é a unidade do produto resultante da expansão ibérica sobre a América e o seu bem-sucedido processo de homogeneização. (RIBEIRO, 2017, p.21)

Essa homogeneização para o autor aconteceu, portanto, exatamente porque fomos capazes de sobreviver e manter certas características mesmo quando o projeto colonizatório priorizava o apagamento. Este processo não é de fácil percepção para nós latinos, mas basta irmos ao Norte que logo seremos reconhecidos, parece que algo permanece, uma aura latina. Algo nos aproxima entre nós latinos e nos distingue dos povos colonizadores. Seja em locais onde haviam, como coloca Ribeiro (1986), os povos-novos, feitos pela miscigenação de indígenas, negros e brancos ibéricos (brasileiros, venezuelanos, colombianos, cubanos etc) ou povos-testemunho (mexicanos, guatemaltecos, bolivianos, peruanos etc), o objetivo do colonizador nunca foi apoiar e sustentar o desenvolvimento de um povo e suas características primárias, mas transformar estes locais em colônias subalternas e uma força de trabalho submissa. Militares, governos e eclesiásticos todos ditavam regras ignorando completamente a cultura já existente no período pré-colonial. A América Latina era vista como um local de combustível humano, onde as pessoas não deveriam ter suas peculiaridades, tradições e prosperidade.

Ribeiro (1986) aponta também questões interessantes acerca da utopia latino-americana, com seu olhar mais crítico para como o colonizador viu em nossas terras o local da utopia, “lugar nenhum” e dos prazeres e pecados, mas seria interessante olhar essa utopia como possibilidade de um mundo porvir, como as obras de arte nos apontam mais a frente. Nesse sentido, a utopia partiria de nosso próprio olhar e não do olhar estigmatizado do Norte. Esse olhar estigmatizado persiste e devemos ver de onde nossos estereótipos partem de fato. A América Latina preguiçosa, festeira, da sombra e água fresca são olhares do Outro, projetados sobre nós, que, por uma frágil percepção de nós mesmos, acaba sendo assimilada e reproduzida, fortalecendo assim a dominação colonial e classista.

Como analisa Chauí (2016, p.30) a utopia tem este duplo sentido positivo e negativo. Positivo quando analisada pelo prefixo “eu” do grego, que remete a abundância, nobreza, bondade e negativo quando visto pelo prefixo “u” que remeteria a ‘lugar nenhum’. “Assim, o sentido positivo veio naturalmente acrescentar-se ao sentido negativo, de maneira que utopia significa, simultaneamente, lugar nenhum e lugar feliz, eutópos. Ou seja, o absolutamente outro é perfeito.” Seria de grande valia para a América Latina, enxergar-se como “o outro perfeito”, negando o destino que lhe foi imposto; sonhar-se uma sociedade nova, desprendida das amarras do Norte e capaz de caminhar com suas próprias pernas. Essa utopia deve ser vista e pensada a partir da verdadeira história latino-americana, sem olharmos regras e conceitos já teorizados sobre tal tema por europeus/ norte-americanos.

Nesse sentido, a arte nos traz grandes exemplos da possibilidade de criação latino-americana que nos indicaria a essa possibilidade de novos mundos sensíveis perceptíveis e um outro entendimento sobre a nossa realidade. Nesse artigo veremos a articulação das semelhanças entre os países latino-americanos através da arte.

 

Arte latino-americana e mundos porvir

Os artistas latino-americanos que conseguem quebrar a bolha do mercado de arte norte-americano/ europeu e inserem-se no circuito artístico com temáticas que tratam dos processos colonizadores devem ser melhor observados por todos para pensarmos nessa única voz latino-americana. Quando são inseridos no circuito artístico que é majoritariamente norte americano e europeu, é como se estes artistas dissessem “Veja o que fizeram e fazem, veja como nos sentimos, existe algo além de sua dominância em ponto de ebulição”.

Ebulição. Para que haja uma revolução, uma unificação precisamos dessa ebulição, e para isso, precisamos abrir nossos olhos, reconhecer raízes e fortalecer almas mesmo em meio às nossas contradições. Claro que tudo isso deve ser feito de maneira crítica e a arte nos possibilita tanto a crítica quanto a unificação em meio a nossas diferenças, para assim entendermos que é a nossa história e pluralidade que nos tornará fortes. Somos mais de 500 milhões de latino-americanos esperando pelo reconhecimento de um “além de nós”, quando ele deveria partir de aquém, enxergarmos a nossa potência em nossa própria cultura plural.

A obra de Cildo Meireles Cruzeiro do Sul (1969/70) é um ótimo exemplo para mostrar com inteligência e sutileza quem somos nós. Ela consiste em um cubo de 9x9x9 mm feito de dois tipos de madeira, pinho e carvalho, colocados de maneira cruzada. Este cubo deve ser exposto no chão de uma sala com área mínima de 200m² e um enfoque de luz sob ele.

Essas madeiras, na cultura Tupi, seriam entidades míticas em que com a fricção entre elas surgiria o fogo, um elemento sagrado para eles. Para o artista, essa obra representa a cosmogonia materializada, era uma espécie de adensamento de matérias e significações. Cruzeiro do Sul abre espaço para diversas interpretações simbólicas para além das que o artista já coloca, como a relação do espaço que a obra em si ocupa e o grande espaço expositivo versus o espaço das árvores em seu estado natural e qual espaço elas ocupariam.

Podemos pensar também na potencialidade de um pequeno cubo que se manuseado pode tanto iniciar o fogo como evocar uma divindade.

A maneira que o espectador tem que se abaixar e chegar muito perto para observar a obra, o espaço vazio que circunda a obra em comparação com sua potencialidade simbólica imensa.

O processo colonizatório sofrido pelos povos indígenas e o não reconhecimento dessas histórias míticas dos povos originários brasileiros e sua tentativa de apagamento, enfim, as possibilidades de interpretação da obra são múltiplas.

Uma das reflexões do artista em relação a obra é que, Cruzeiro do Sul é o nome de uma constelação que demarca o Hemisfério Sul e curiosamente, antigamente, fazia parte da constelação de Centauro e hoje, ela é considerada uma constelação própria. Para o artista, já que é uma constelação que só pode ser observada do Sul, ela é capaz de alterar nossos referenciais deslocando nosso ponto de vista territorial, isso porque ele sempre veio do Norte, ou seja, dos colonizadores.

O Sul seria um território de referência para quem nele se encontra. Moacir dos Anjos (2017) nos lembra “ […] a ideia de que o Sul também é o lugar de onde pode vir a reinvenção de modos e vida fraturados pela subordinação ao Norte, pondo, no limite, essa relação de poder em crise.” Essa obra, portanto, nos atenta para outros modos de olhar para o nosso território, assim como a famosa obra do artista uruguaio Joaquim Torres Garcia (1874-1949)

América Invertida de 1943 é a reprodução do mapa latino-americano só que invertido, propondo o Sul como ponto de partida para nossas criações e mostrando para nós onde deveríamos estar localizados e para onde deveríamos buscar nossas referências.

Essas linhas que dividem Norte e Sul são bem explícitas para Boaventura (2013, p.29)

As distinções invisíveis são estabelecidas através de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o universo ‘deste lado da linha’ e o universo ‘do outro lado da linha’. A divisão é tal que ‘o outro lado da linha’ desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente. […] Tudo aquilo que é produzido como inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao universo que a própria concepção aceite de inclusão considera como sendo o Outro.

Adriana Varejão (1964) é uma artista brasileira que devolve para “o outro lado da linha” as feridas que eles causaram em nossa história com suas famosas pinturas de azulejos carne. Varejão recupera a azulejaria portuguesa que só recentemente começou a ser valorizada pela crítica e história da arte. A sua reprodução não visa a realidade, e sim um diálogo com os nossos colonizadores. Eles retomam a questão antropofágica da obra do gravurista Théodore de Bry, o exotismo da terra tropical e o corpo humano mutilado, escancarando por trás dessa azulejaria, a carne dos povos originários. A artista propõe o outro lado, o avesso que mostra a América como invenção do ocidente. A reinvenção da América através do material fornecido pelos europeus, tomando posse dessas imagens eurocêntricas ilusórias.

A artista consegue trazer então, um novo olhar sobre o corpo latino-americano. O “moinho de gastar gente” (RIBEIRO,1995) aqui é levado às últimas consequências. Podemos pensar também em uma expressão como “varrer a sujeira para baixo do tapete”, aqui no caso é colocá-la cimentada atrás das paredes de nossa fundação que está prestes a ruir.

Já a obra de Hélio Oiticica (1937-1980), que também carrega muita potência em Seja marginal, seja herói apesar de falar de um episódio específico e uma situação brasileira, pode ter sua interpretação mais ampla para o cenário latino-americano. A obra consiste em um poema-bandeira produzido em 1968, num contexto de ditadura militar em que o artista homenageia supostos bandidos da época, a pessoa representada era Cara de Cavalo, um bandido muito procurado que foi morto com mais de cem tiros por uma espécie de esquadrão da morte da polícia. O artista não isentava o indivíduo de seus crimes, mas acreditava que ele havia sido somente uma espécie de bode-expiatório. E utilizou de sua imagem como um símbolo da opressão social dos marginais. Nesse sentido, não seríamos nós, latino-americanos, os marginais? Hélio Oiticica em um texto apresentado numa exposição na mesma data nos dizia sobre o herói anti-herói:

O que quero mostrar, que originou a razão de ser uma homenagem, é a maneira pela qual essa sociedade castrou toda a possibilidade de sua sobrevivência, como se fora ela uma lepra, um mal incurável- […] colaboraram para torná-lo o símbolo daquele que deve morrer, e digo mais, morrer violentamente […]. Há como que um gozo social nisto, mesmo nos que se dizem chocados ou sentem ‘pena’. (OITICICA, 1968)

Ao lermos as palavras do artista, poderíamos facilmente transformá-las na visão que o Norte possui do Sul. A ideia de um mal incurável persiste desde os tempos de colônia.

Boaventura (2013) traz a noção de “regresso do colonial”, onde colonial é aquele que entende-se como vivendo do “outro lado da linha” e rebelam-se contra este fato, sendo assim, percebido pelo Outro como ameaça às suas estruturas. Além disso, o autor categoriza três principais coloniais que fazem tal movimento, o terrorista, o imigrante indocumentado e o refugiado. Todos estes conseguem trazer à tona a linha que separa Norte e Sul mas sua presença não necessariamente precisa ser física territorial. Neste sentido, poderíamos arriscar a intromissão destes artistas como um ruído indesejado em um sistema dominado pelo colonizador.

Pensando nesse “regresso do colonial”, de maneira mais literal, temos o artista Javier Téllez (1969) em sua performance One flew over the Void (bala perdida) de 2005, ele atira-se de um canhão de Tijuana, México para San Diego, Califórnia atravessando a fronteira ilegalmente. Em tempos de muros e perseguições a imigrantes “do lado de lá”, essa obra é uma transgressão sócio política chocante e que nos abre os olhos a que nos submetemos procurando acolhimento em um território que nos vê como subalternos, ilegais ou persona non grata.

O sentimento de pertencimento social na América Latina é muito difuso e aí está o possível valor da arte e das utopias para que possamos nos olhar com outros olhos, sem o véu imperialista que dominou nossas subjetividades. Existem muitas explicações para o comportamento do oprimido tornar-se igual ao do opressor. Desde a ideia colocada por Paulo Freire (1968)[1] do desejo do oprimido tornar-se opressor até a análise de perpetuação de um comportamento que foi iniciado no momento da invasão.

Ribeiro (1986) destaca alguns pontos nesse sentido. Em um primeiro momento nosso suposto subdesenvolvimento era explicado pelo clima e pela mestiçagem com etnias consideradas inferiores, outra lamúria era sobre a ideia de que se outros povos tivessem sido nossos colonizadores as coisas seriam diferentes. Há também o fato de que a classe dominante nunca quis igualar-se a tais povos, acreditando sempre que faziam parte ‘do outro lado’ atrelaram-se às políticas estrangeiras e hoje vendemos a preço de banana não só nossa mão-de-obra mas nossas riquezas, terras, empresas, potências, desejos etc. Além do ‘outro lado de lá’ temos o Outro residente, latino, nativo visto ainda como um estrangeiro em seu próprio território.

Uma análise muito interessante para esse fenômeno é apontada através da psicologia analítica. Essa negação do outro é explicado pelo que Thomas Singer e Cathernie Kaplinsky (2010) chamaram de “complexo cultural”, entende-se complexo como uma força fundamental pra vida psíquica e que é capaz de impedir-nos de chegar ao que seria essencial à nossa consciência, um “complexo cultural” diz respeito primeiramente ao grupo e depois ao indivíduo. Eles seriam baseados nas experiências históricas que se repetem e acabam por enraizar-se na psique coletiva e consequentemente individual.

Nesse sentido, Boff (2016) aponta alguns complexos brasileiros, o primeiro seria da corrupção e do ‘jeitinho brasileiro’ advindo dos saques e roubos de nossas riquezas no processo colonizatório, outro seria da ‘casa grande senzala’ e a escravidão que fez por criar uma sociedade com uma mentalidade patriarcal e de dominância, outro estaria localizado no passado colonial violento com os grupos  indígenas originários de nossas terras, reduzindo-os através de imposições linguísticas, religiosas e culturais e por fim o genocídio desses povos, fazendo com que sejamos incapazes de tolerar o diferente. Essa destruição das populações originárias aconteceu e acontece até hoje no Sul global.

Outra perspectiva é apresentada por Fuentes (2020), segundo a autora, essa negação do Outro é a projeção inconsciente de nossa sombra em algo que não identificamos como sendo Eu, possuídos por nossos complexos e nossas sombras somos incapazes de compreender nosso presente e nos direcionar para um novo futuro, sem as repetições inconscientes do complexo cultural. Descentrar-nos e observar o que de nós há no Outro, é um processo muito custoso e que nos foi negado por muito tempo. Mas, ainda ressalto que através da arte isso pode acontecer de maneira simbólica, atuando em nossas subjetividades e percepções.

Darcy Ribeiro (2013, p. 83) coloca

Somos, culturalmente, uma espécie de povos tábula rasa, desculturados dos saberes e das artes tão elaboradas de nossas matrizes indígenas, africanas, europeias. Ao nos civilizarmos, ficamos parvos. Perdendo a cara e o ser que tínhamos, viramos uma pobre coisa que só lentissimamente se vem refazendo pelo cruzamento pelo cruzamento sincrético de tradições alheias. Quando elas se cristalizavam numa cultura popular vivente, surgiram rádio e a televisão que tudo querem converter em folclore e matar para difundir o iê-iê-iê. Mas resistimos. Até quando?

Seus apontamentos são válidos para a revolta de um latino-americano apaixonado hoje, porém, a cultura tem aberto o olho e exaltado, denunciado e trocado com nossa latinidade e nosso Outro negado. Além dos artistas já mencionados temos também por exemplo, as obras do artista Paulo Nazareth (1977). Em sua performance Cadernos da África, com início em 2013 e duração de cinco anos, o artista caminhou de sua casa em Belo Horizonte cruzando o Brasil, depois fez o mesmo no continente africano, indo da Cidade do Cabo em direção ao norte. Nessa caminhada o artista estabelece conexões e busca o nosso passado compartilhado em nossas semelhanças. Outra obra muito interessante do artista é Produtos de genocídeo, de 2010, o artista faz panfletos com nomes de empresas que usam da linguagem indígena como Azteca, uma construtora ou Aymoré uma marca de biscoitos.

Outra obra potente que nos aponta para o lugar do outro é da artista Rivane Neuenschwander (1967), Eu desejo o seu desejo, de 2003 cada visitante pode retirar da instalação uma fita com escritos de desejos de outras pessoas, fazendo com que esses desejos se diluam em fronteiras e corpos desconhecidos e sejam consumidos por um Outro.

Por fim, o artista indígena Denilson Baniwa (1984) explora em sua cultura meios de atualizá-la e trazê-la para a contemporaneidade através de símbolos que fazem parte de nossa origem por meio da cultura indígena do povo Baniwa ( etnia indígena que habita a Colômbia, Venezuela e parte do Amazonas). O artista discute em seu trabalho fronteiras entre mundos de realidades tão diferentes mas que possuem uma única matriz. Afinal, o que é indígena e o que não é? Ele propõe assim uma história dinâmica e viva através de suas performances, pinturas e intervenções artísticas.

 

Considerações finais

Para concluir, devemos ressaltar que a ideia não é a construção de um latino-americano, de um brasileiro ou de um indigena em específico, mas sim a valorização da diversidade latino-americana e sua potência na homogeneidade e em sua semelhante e persistente devastação. A arte por si só de maneira individual, não tem o poder de mudar políticas e estruturas tão enraizadas, esse pensamento deve ser sempre questionado mas seu poder emancipador reside na liberdade de se criar e mostrar um novo mundo, olhar e possibilidade, levantar questões que até então eram trazidas pelo outro lado. Uma nova utopia latino-americana. “[…] na história dos homens cada ato de destruição encontra sua resposta, cedo ou tarde, num ato de criação” (GALEANO, 1978).

 

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Nota

[1] “Pedagogia do Oprimido”, do educador Paulo Freire escrito entre 1964 e 1968.

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