The cartography of social pedagogy in Latin America
LOPES, Leandro Alves. A cartografia da pedagogia social na América Latina. In: Aguarrás, vol. 8, n. 38. ISSN 1980-7767. São Paulo: Uva Limão, JUL/DEZ 2021. Disponível em: <http://aguarras.com.br/pedagogia-social/>. Acesso em: [current_date format=d/m/Y].
Resumo
Nesta reflexão pretende-se analisar aspectos amplos da Pedagogia Social no contexto latino-americano, traçando possível plano de experiências contra-hegemônica desenvolvida por educadores sociais, isso ocorreu através dos procedimentos metodológicos como levantamento bibliográfico de artigos, capítulo de livros, dissertação e tese, produzidos por pesquisadores do Uruguai, Colômbia, Argentina, Chile e Brasil, analisados sob a perspectiva cartográfica/rizomática de Deleuze e Guattari (2009), que apresentam o conceito como um sistema de redes sem início ou fim, apenas meio, aliança de diversos dispositivos, linhas e caminhos. Sendo possível identificar como resultado deste cartografar as propostas socioculturais como potencializadores para apropriação da história e cultura latino-americana, o fortalecimento da criatividade, do guia interior e dos comunicantes da humanidade.
Palavras-chave: Cartografia. Pedagogia Social. Educador Social. Sociocultural.
Abstract
In this reflection we intend to analyze broad aspects of Social Pedagogy in the Latin American context, outlining a possible plan of counter-hegemonic experiences developed by social educators, which occurred through methodological procedures such as bibliographic survey of articles, book chapters, dissertation and thesis, produced by researchers from Uruguay, Colombia, Argentina, Chile and Brazil, analyzed from the cartographic/rhizomatic perspective of Deleuze and Guattari (2009), who present the concept as a system of networks without beginning or end, only a means, an alliance of different devices , lines and paths. It is possible to identify, as a result of this mapping, the sociocultural proposals as potential for the appropriation of Latin American history and culture, the strengthening of creativity, the inner guide and humanity’s communicators.
Keywords: Cartography; Social Pedagogy; Social educator; Sociocultural.
Introdução
A Pedagogia Social é uma ciência da educação que se desenvolveu no pós-guerra, quando a sociedade europeia, esfacelada pela violência, necessitava de novas educabilidades, didáticas e relações ensino-aprendizagem que subsidiassem os sujeitos e as instituições a formar homens e mulheres sob a ótica do paradigma dos direitos humanos. Entretanto, como essa ciência ao cruzar o atlântico se materializa? Pretende-se, portanto, traçar as linhas convergentes que traceja os aspectos amplos dessa ciência – contexto, campo, prática e teoria –, produzindo uma possível cartografia da Pedagogia Social latino-americana.
A cartografia, está para além do campo da geografia, é entendida na perspectiva interdisciplinar e rizomático, pois visa esquematizar a rede pela qual o fenômeno em questão está ligado e interligado, jaz “inteiramente voltada para uma aproximação ancorada no real” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 21) que se apresenta como mapa dinâmico, estético e ético-político. Nesse sentido, o ‘mapa’ cartografa também territórios subjetivos e as nossas movimentações, relações sociais, grupos, epistemologias, encontros e seus afetamentos.
As redes ao serem cartografadas nos apresentam pistas para qualificar a práxis, visto que elas, na perspectiva de Guattari são, por excelência, comunicacionais da dinâmica coletiva de um grupo, do qual produz modus operandi multidimensional e/ou aspectos do ethos, pathos, logos e mythos de uma inter-relação histórica.
O termo rede reúne vários significados, que extrapolam a materialidade de uma malha têxtil de caça ou pesca, tais como a noção de interação, conexão, interconexão, que está em permanente ampliação multidirecional. A rede se conecta a tudo e a todos em fluxos abertos de múltiplos planos e vetores de cooperação, logo se opõe a ideia hierarquização, organograma, escala, sistema piramidal.
A rede tem uma episteme interdisciplinar, envolvendo aspectos históricos, filosóficos, teológicos, econômico, político, psicológico, biológico entre outros. Mas em Deleuze e Guattari (2009), através dialogicidade e cambiamento entre diversas ciências, como filosofia e artes, cunham o conceito rizomático como um grande emaranhado de rede de sentidos entre os sujeitos, que os liga por linhas invisíveis, mas carregadas de intensidades convergente e divergente. Para esses autores,
[…] qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. […] Cadeias semióticas de toda natureza são aí conectadas a modos de codificação muito diversos, cadeias biológicas, políticas, econômicas etc., colocando em jogo não somente regimes de signos diferentes, mas também estatutos de estados de coisas. (Deleuze & Guattari, 2009, p.15).
Dessa forma, se faz necessário sistematizar o rizoma para “[…] expor toda a coisa sobre um tal plano de exterioridade, sobre uma única página, sobre uma mesma paragem: acontecimentos vividos, determinações históricas, conceitos pensados, indivíduos, grupos e formações sociais.” (DELEUZE; GUATTARI, 2009, p.17-18).
Cartografar a rede, e não mapear: o mapa, o decalque, leva à solidificação da rede, impedindo seu dinamismo, sua pulsão. A cartografia da rede acompanha os afetamentos e metamorfoses da relação histórico-social.
A cartografia empregada neste trabalho como método de pesquisa nos permite traçar um plano da experiência do educador social que valendo-se da Pedagogia Social produz práticas e teorias potencializadoras de uma transformação da realidade. A confecção desse plano não ocorre apenas por um caminho linear, vertical e horizontal, mas também na transversalidade, ressignificando a ótica cartesiana.
Os apontamentos de Deleuze e Guattari, subsidia nosso caminhar através do método cartográfico, pois eles empregam procedimentos vividos, do qual utilizaremos, tais quais a definição do território, dispositivo e das linhas, que acrescidos da observação e análise de fontes bibliográficas tendem a gerar dados significativos.
Para iniciar o método de pesquisa cartográfico precisamos definir qual o território a ser sistematizado, entendendo haver “[…] território a partir do momento em que componentes de meios param de ser direcionais para se tornarem dimensionais, quando eles param de ser funcionais para se tornarem expressivos. Há território a partir do momento em que há expressividade do ritmo.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 121)
Compreende-se território “[…] antes de tudo lugar de passagem” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 132), portanto, só é possível cartografar um território, após habitá-lo, se relacionar com sua dinâmica, aprender e apreender com os processos e suas manifestações históricas. Ao invés de controlá-los, acompanhamos seus ritmos, não se trata, portanto, de um desbravar colonizador, depredador, hierarquizado, dominante diante do ‘objeto-coisa’ pesquisado. Também não é uma pesquisa sobre o território coisificado, mas uma pesquisa de experiência comprometida eticamente que se revela em uma episteme entendida como dispositivos que interpreta os movimentos das subjetividades e das relações. Entende-se dispositivo como:
[…] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos. (FOUCAULT, 1979, p. 244)
Em outras palavras o dispositivo “é de início um novelo, um conjunto multilinear. Ele é composto de linhas de natureza diferente” (Cf. Deleuze, 1990), linhas de subjetivação, linhas que captam modos de sentir, perceber, existir, resistir, ressignificar, significar, educar e comunicar. A linha “[…] é um processo, uma produção de subjetividade, num dispositivo: ela deve se fazer, para que o dispositivo a deixe ou a torne possível.” (Deleuze, 1990) A linha responde a problemas colocados pelos dispositivos, buscando dar pistas, rotas, alternativas de percorrer o problema e quiçá superá-los.
Deleuze indica que em cada época, em cada estrato sócio-histórico, há maneiras de sentir, perceber existir, resistir, ressignificar, significar, educar e comunicar que formam então o dizível, isto é, as linhas de visibilidade e de enunciação que produzem coisas e palavras. O uso do método trata-se, por optar qual ramificação rizomática desta produção dar-lhe visibilidades e delas “rachar as palavras ou as frases” para extrair os enunciados (Cf. Deleuze, 1992).
Para o ‘pesquisador-cartografo’ esse ‘saber-fazer’ da pesquisa, não é fácil, principalmente no início, como é o caso do pesquisador, compreendo que o exercício do método exige prática contínua, contudo, inspirado pela conclusão da disciplina ‘Cartografias artísticas latino-americanas[i]’, relacionando-a com minha práxis em Pedagogia Social. Para tanto, adota-se a América Latina e a Pedagogia Social como território, opta-se dispositivo as urgências sócio-históricas, entretanto, quais seriam elas? Que linhas são reveladas e produzem visibilidade e enunciados? Que cartografia é possível criar?
Esses problemas entrecruzam a discussão conceitual de Pedagogia Social como experiência concreta de habitar um território singular, a América Latina. Para dar visibilidade ao plano cartográfico opta-se pela arte-visual de recurso gráfico ‘nuvens de palavras’, pois não tem forma lógica, por meio de algoritmos arquiteta imagens formadas por palavras cujas dimensões indicam sua frequência de termos em hipertextos, relevância, pulsão etc. Não é uma mera ilustração, mas a síntese dos dados levantados do estado da arte.
As Nuvens de Palavras tornam-se suplementar à análise de conteúdos tornando-se na perspectiva da metanarrativa, onde busca-se nesse processo a identificação de núcleos de discursos e sentidos, fornecendo insights para o reconhecimento padrões entre as ideias expressadas. O aplicativo utilizado foi a versão gratuita de Voyant[ii].
E para isso, foi realizado um levantamento do estado da arte consultando a Coleção de Pedagogia Social no Brasil e artigos nos repositórios Scielo e Google Acadêmico, utilizando as palavras chaves: Pedagogia Social na América Latina; Pedagogia Social no Uruguai; Pedagogia Social na Argentina; Pedagogia Social na Colômbia, Pedagogia Social no Chile, Pedagogia Social no Brasil. Foi possível localizar 19 artigos, 3 capítulos de livros, 1 dissertação e 1 tese.
Os textos permitiram traçar indicativos para análise e reflexões acerca da Pedagogia Social na América do Sul com miradas para toda a América Latina, tais como contexto, campo, prática e teoria, contudo é uma obra em construção e nos permite, por hora, traçar um panorama, como versaremos. Para a análise dos dados foram utilizados autores como:
A nuvem e palavras 2, permite visualizar os autores que apoiaram a análise de dados constituindo pistas para a Pedagogia Social latino-americano enquanto território, os dispositivos latino-americanos de um cartografar sociocultural e as linhas que delineia esta cartografia constituindo assim um rizoma que não cessa “[…] de conectar cadeias semióticas, organizações de poder, ocorrências que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais […]”. (DELEUZE; GUATTARI, 2009, p.15-16).
A Pedagogia Social latino-americano como território.
Adotamos na perspectiva do método cartográfico o território o espaço geopolítico da América Latina, mas especificamente América do Sul e nele a Pedagogia Social que é uma ciência que emerge da observação de experiências do plano teórico e prático, da ação-reflexão-ação tendo um lócus delineado e condições singêneses a convivência humana.
Habito o território da pesquisa como educador social e pesquisador, o que me permite compreender o fenômeno sob a ótica sociopedagógica, sociocultural, sociopolítica, sociopastoral e epistemológica à medida que problematizo e sistematizo as inquietações, problemas, dramas, hipóteses, reflexões experiências das redes/grupos do qual me relaciono. O território é o espaço criado, utilizado, ressignificado pelas pessoas que o habitam e nele convivem; logo, é o “[…] resultado de uma práxis coletiva que reproduz as relações sociais, […] o espaço evolui pelo movimento da sociedade total.” (SANTOS, 1978, p. 171).
A Pedagogia Social é a ciência da Educação Social, o guarda-chuva que organiza em torno de si as diferentes sistematizações de princípios, pressupostos, técnicas, métodos e estratégias para articular e fomentar os processos de ensino-aprendizagem.
A pedagogia, como teoria da educação, traduz essa riqueza de práticas educacionais. As pedagogias que se dizem puramente científicas, sob sua pseudoneutralidade, escondem a defesa de interesses hegemônicos da sociedade e concepções de educação, muitas vezes, autoritárias e domesticadoras. Ao contrário, as pedagogias críticas têm todo interesse em declarar seus princípios e valores, não escondendo a politicidade da educação. (GADOTTI, 2012, p. 1).
A Pedagogia Social procura dar resposta à integração do sujeito com sua biografia, com a história de grupos, com sua cultura e com a sociedade, tanto do ponto de vista teórico quanto do prático sob a ótica da cultura do direito, por isso teve grande adoção das organizações sociais no exercício do atendimento das políticas públicas.
Não se trata de integrar o que está desintegrado, incluir o que está excluído: isso é a integração do excluído na exclusão. Trata-se de questionar o funcionamento social das relações e estruturas, numa ótica dialética, que problematiza o conformismo. Desse modo, a ação do educador aspira à transformação da sociedade a partir da transformação do sujeito e, para isso, faz-se necessário estabelecer uma cultura em que novos modus operandi superem os elementos da antiga ordem social.
Segundo dados analisados por meio do levantamento bibliográficos sobre a Pedagogia Social na América Latina foi possível destacar expressões recorrentes que de uma certa forma caracteriza está ciência, como observa-se:
O ator desse processo pedagógico é o educador social que, a partir dos múltiplos gritos de justiça e por justiça teorizam seu agir sobre os domínios e dimensões da Pedagogia Social. Nessa perspectiva:
Ser educador social é um grande desafio, pois constitui-se em uma tarefa artesanal de construir uma ideia, uma obra, uma esperança futura, edificar saberes aprendidos e cultivados no cotidiano da vida em um movimento dinâmico e complexo entre seres humanos. Toda relação educativa é uma relação entre pessoas que aprendem a viver os saberes, os valores, os ritos, hábitos e costumes de uma determinada época em uma dada sociedade. (GRACIANI, 2014, p. 25).
Nesse sentido, ser educador social é uma opção por um projeto, que tem uma intencionalidade clara, para exercer suas atividades como ser reflexivo, na práxis e na dialética, o que proporciona uma ação educativa, cujo objetivo é romper com as visões simplistas, tradicionais e opressoras. Isso exige do educador ousadia, coragem para se posicionar e enfrentar as diversas realidades presentes nos territórios, com olhar sensível para as situações de vulnerabilidade e acolhimento não apenas do educando, mas de toda a complexidade que envolve seu universo, isto é, suas marcas, trajetórias, seus dramas, sofrimentos, violências, negação e sonhos. Sobre esses aspectos encontrasse elementos que na cartografia denominamos dispositivos.
Os dispositivos latino-americanos para um cartografar sociocultural
O acontecimento fundante da modernidade foi o descobrimento do continente americano, este marco foi essencial na constituição do ‘ego’ moderno. A experiência europeia do descobrimento se reveste na forma de negação e de encobrimento do ‘outro’, encoberto em sua alteridade eurocêntrica, isso é o índio, o negro, a mulher, a criança, entendidos como inumanos, inferiores, não civilizados (DUSSEL, 1992), incumbindo a missão explorar terras ‘sem dono’, civilizar, catequizar e desenvolver os mais ‘primitivos’, exercendo a violência como recurso pedagógico.
Essa violência se estrutura na subjetividade dos povos latinos, que se enraizou ao longo dos séculos, deixando como legado oprimidos, submissos, coisificados, conformizados, dóceis, que aceitam ou toleram sua condição de miséria, sofrimento, violência, desigualdade, pobreza, miséria, exclusão social.
Os povos oprimidos culpam apenas a si próprio, reproduzindo um ciclo de marginalização, difícil de ser rompido, pois, os sujeitos tendem a estar emocionalmente fragilizados, com baixa estima, autoconfiança, autodeterminação, entre outros, que não propícia reunir os mecanismos necessários para poderem fazer escolher, organizarem ou terem perspectivas de futuro.
Atesta-se o contínuo e árduo exercício de tensionamento social, para se assegurar direitos, manter as conquistas sociais e a democracia, que em diferentes períodos apresenta estilos de governos, incapazes de nos desvencilhar da antiga ordem social, seja eles populistas, nacionalistas, social-democratas, socialismo democrático, desenvolvimentistas, liberais, tecnocratas, militares, ou até um mix entre eles. Assim, a conjuntura político-econômica e social, independente dos governos, tem sido desfavorável à classe trabalhadora, estigma que impregna a América Latina.
Na tradição latino-americana, a resistência mantém-se através das diversas organizações populares da sociedade[iii], como os camponeses, movimentos sociais, pastorais, comunidades tradicionais, juventudes, mulheres, organizações não governamentais, além do Fórum Social Mundial, do Fórum Social das Américas, Fórum Meso-americano, Cúpula dos Povos, Intereclesial, Encontro Latino-americano e do Caribe das Comunidades Eclesiais de Base, produzem práticas e teorias contra-hegemônica que alarga a compreensão de diversas ciências, entre elas a pedagogia.
Essa ação e reação presente no território se dá na história e suas implicações temporais de curta, média e longa duração, que na perspectiva de Fernand Braudel (1966, 1969 e 1990) exemplifica nosso cotidiano, visto que os processos de curta duração se referem aos acontecimentos vivenciados no presente como as experiências e apropriações; já a média duração são os fatores conjunturais que perpassa o cotidiano e a longa duração, está ligada a seus aspectos estruturais.
Estudar a América do Sul, por exemplo, é conectar os fatores em comum entre as sociedades, que na história, ancora as manifestações de curta, média e longa duração, sua complexa relação histórica que se projetam no presente e, criaram as condições para múltiplos imaginários sociais.
Refletir sobre a construção das práticas sociais pela perspectiva da Pedagogia Social ou da Sociologia da Educação ou do desvio ou do direito implica a discussão do sentido e da práxis da cultura de direitos. Na realidade brasileira do século passado, no final da década de oitenta e início dos anos noventa, a sociedade conquistou um reordenamento jurídico que contribuiu para a construção de uma cultura de direitos. (SOUZA NETO, 2009, p. 257).
Assim, a ação pedagógica, política e pastoral do educador social questiona, rejeita e visa superar o absolutismo, o autoritarismo, o negacionismo e demais manifestações da cultura opressora, “[…] que ainda toma conta da sociedade brasileira, emperra a passagem do mal- ao bem-estar social. É uma sociedade em que os direitos sociais e econômicos são sonegados para a maioria da população, que é tratada pelo viés de uma cidadania de segunda classe, tutelada pelo Estado”. (SOUZA NETO, 2009, p. 269). Em síntese o breve panorama latino-americano se estrutura em ecos dos processos de desigualdade e vulnerabilização, como se observa na nuvem de palavras 4:
Tornam-se necessárias, portanto, práticas pedagógicas que visem a superação do agir humano imbuído da ótica da velha ordem social, além de influenciar as relações sociais e constituir novos sujeitos a partir da doutrina de proteção integral, com políticas que assegurem os direitos humanos. Daí a necessidade de integrar esse sujeito que assimilou a cultura da velha ordem social com os nascidos já na nova ordem social. Com esse objetivo, foi sendo sistematizada a Pedagogia Social, que concebe uma atuação no campo das relações e do agir humano, tais práticas pedagógicas na perspectiva cartográfica é compreendida com as linhas de delineia, interligam, circunscreve o nosso mapa.
As linhas que delineiam esta cartografia
Diversos pesquisadores, entre eles os que compõe esta pesquisa, têm interpretado e problematizado que as práticas e teorias educativas contra-hegemônicas na América Latina produzem uma educação social, comunitária e popular a séculos, tais leituras educacionais vêm forjando a Pedagogia Social latino-americana, ciência essa que congrega alternativas para um agir e refletir individual, coletivo e institucional, que materialize no cotidiano relações pautadas nos marcos democráticos e nos valores universais.
Contudo, somente no processo redemocratização, é que a pedagogia social começa a ser difundida nas práticas cotidianas através de educadores principalmente em organizações públicas não estatais e em outros espaços não escolares, tendo como principais públicos grupos de vítimas dos processos de desigualdade e com uma predominância ao “[…] enfrentamento da pobreza, da marginalização e exclusão de pessoas na sociedade […] aliadas à ideia de trabalho social e de educação para a promoção social”. (CALIMAN, 2008, p. 53).
Sendo assim, a prática pedagógica visa a superação do agir humano sob a ótica da velha ordem social, além de influenciar as relações sociais e constituir novos sujeitos a partir da doutrina da proteção integral, com políticas que assegurem os direitos humanos. Daí a necessidade de integrar esse sujeito que assimilou a cultura da velha ordem social com os nascidos já na nova ordem social.
As ideias expressadas nas práticas encontram aportes teóricos nas reflexões de freiriana, dusseliana[iv] de uma filosofia, pedagogia e teologia da libertação episteme decolonial latina, tendo como uma das principais metodologia a dialética que valoriza a ação do sujeito. Nesse sentido, não é uma simples técnica, não separa conhecimento e ação, pois uma dimensão ilumina a outra. A prática se funde em um processo de construção de conhecimentos e seus protagonistas se apropria criticamente da situação, no sentido de interpretá-la e transformá-la. Em síntese:
[…] a metodologia da Pedagogia Social é centrada na pessoa e baseada na proposta de desenvolvimento […] possibilitando soluções e práticas mais abrangentes a partir do estabelecimento de uma linha mestra entre o que se é, o que se sente e o que se faz, viabilizando o que também poderá vir a ser. Os temas abordados são centrados no desenvolvimento do potencial humano e concebidos a partir das relações e conexões. (GRACIANI, 2014, p. 44).
A Pedagogia Social reúne um conjunto de ideias que afetam os campos da ciência e da prática cotidiana. No Brasil essas ideias foram categorizadas em cinco domínios, sociopedagógico, sociopolítico, sociopastoral, sociocultural e epistemológico. Segundo Lopes (2020), cada domínio tem uma intencionalidade e afeta o sujeito de forma diferente, utilizado conforme a realidade apresentada.
Os domínios são espaços potencializadores de aprendizagem, de práxis, ritmo, tempo, atitude e postura do educador social. Nos textos pesquisados encontram-se uma predominância do domínio sociocultural, que reúne as áreas de conhecimento
[…] as manifestações do espírito humano, expressas por meio dos sentidos, tais como as Artes, a Cultura, a Música, a Dança e o Esporte em suas múltiplas manifestações e modalidades. Pelas características destas manifestações, tornam-se locus privilegiado para a intervenção sociocultural em todos os espaços públicos e privados em que podem acontecer. A intervenção neste domínio tem por objetivo a recuperação de suas dimensões históricas, culturais e políticas, com vistas a dotá-las de sentido […]. (SILVA; SOUZA NETO; MOURA, 2009, p. 284-285).
Na América Latina e nos demais países colonizados ocorreram apagamentos ou criminalização das manifestações culturais, ditas não eruditas. Admite-se o conceito de belo produzido a partir de um viés eurocêntrico e posteriormente norte-americano, despreza, renega ou desqualifica outro. Talvez você conheça as obras, tenha estudado na escola ou ainda ouvido falar do artista Marcel Duchamp, mas bem provável que Arthur Bispo do Rosário lhe cause mais incertezas.
Nega-nos um potencial criativo e criador, potencialidades essas, inerente ao Homem, porém input subjazem nosso interior que inferiorizado cria bloqueio e boicotes. As potencialidades e os processos criativos não se restringem, porém, à arte. O criar só pode ser visto num sentido global, como um agir integrado em um viver humano. De fato, criar e viver se interligam de modo holístico.
No indivíduo confrontam-se, por assim dizer, dois pólos de uma mesma relação: a sua criatividade que representa as potencialidades de um ser único, e sua criação que será a realização dessas potencialidades já dentro do quadro de determinada cultura. Assim, uma das idéias básicas do presente livro é considerar os processos criativos na interligação dos dois níveis de existência humana: o nível individual e o nível cultural. (OSTROWER, 1976, p. 01)
Sem dúvida o processo criativo denota uma ação complexa, pois “[…] se molda pelos padrões culturais, históricos, do grupo em que ele, indivíduo, nasce e cresce […]” (OSTROWER, 2010, p. 11), mas também se permite contagiar por outras linguagens e ciências.
A criatividade, como potencial, e a criação, como realização do potencial, se manifestam de modo idêntico, independentemente dos rumos específicos que depois seguirão nas duas grandes vias do conhecimento (OSTROWER, 1998, p. 285).
Contudo, para processo criativo libertário precisamos superar a antiga ordem social, os oprimidos devem recuperar sua cultura, a história ocultada e a arte têm um primordial papel, pois ela além de captar, transgredir, ressignificar, narrar e suscitar experiências é meio, ferramenta, método e linguagem, que nos ajuda a mergulhar subjetivados onde o educador, educando, o operário, o “[…] artista, enquanto cria se envolve com toda sorte de conhecimento – em contínuo desafio.” (RIZOLLI, 2016, p. 2)
Em síntese a criação na medida que nos apropriamos da cultura, esse movimento ganha um destaque nas práticas do educador social e torna-se propostas socioculturais, “[…] presente em diversas intervenções, se apresentava com a essência da Educação Social”. (CARO, 2012, p. 64).
Entre as propostas mais utilizadas deste domínio destaca-se: artesanato, contação de história, oficinas de diversos instrumentos musicais, expressões da corporeidade como dança, teatro, capoeira, grafite, rap, hip hop, muralismo dentre outras, como pano de fundo resgate do que foi marginalizado, negligenciado, violentado e em uma espécie de catarse libertadora, criativa, critica e mobilizadora.
Esse domínio retoma a força da comunidade, do território, do grupo e através de suas múltiplas criações e expressões transmiti o saber dos povos tradicionais a outras gerações, encontra estratégias de resistência e expressividade mesmo sob a criminalização e as ferramentas institucionais de opressão. “Nesta área é imprescindível um olhar diferenciado para os educandos, e somente a arte e a liberdade de expressão da própria realidade conduzem a uma reflexão e conscientização capazes de mudanças pessoais e, consequentemente, sociais”. (SILVA; GARRIDO; CARO; EVANGELISTA, 2012, p. 07).
Ao evidenciar a comunidade, o coletivo, permite, a milhões de ‘anônimos’ que constroem a história, reconhecimento, já que as manifestações culturais produzidas são por vezes estigmatizadas pelas vulnerabilidades e pela pobreza. Parafraseando o texto do evangelista João, cabe dizer: ‘pode, porventura, vir cultura da periferia?’. O educador social dirá que sim, pois ela marca o pensar e o agir humano e é o meio de analisar o lugar que cada um ocupa na sociedade.
Os educandos através de suas motivações, critérios e interesses criam, cabe ao educador social apresentar e encantar o educando para a criação de tal forma que o mesmo se apaixone pela sua obra, planeje e valorize o processo até a sua conclusão. “Conforme o processo criativo avança o aluno é estimulado a definir critérios ao desenvolvimento do seu guia interno.” (MELLO, 2017, p.148).
O guia interno não necessariamente, ou tão somente, se forma com o que constitui e norteia a vida de um indivíduo, mais sim, vai incorporando a suas relações, experiências, vivências, tradições, dentre outros. Daí mais uma vez a importância do acesso à cultura dita popular e erudita, pois ambas têm um valor para o desenvolvimento do ser humano, pois todos “[…] desenvolve em uma realidade social, em cujas necessidades e valorações culturais se moldam os próprios valores de vida.” (OSTROWER, 1976, p. 01).
Todavia a cultura elitizada e opressora é o artifício a ser rompido: “[…] ‘revolução cultural’ é a continuação necessária da ação cultural dialógica que deve ser realizada no processo anterior à chegada ao poder”. (FREIRE, 2015, p. 214). Tal processo de revolução cultural possibilitará a reconstituição da autoestima dos oprimidos e o caminho para a transmodernidade, visto que é “[…] da cultura revolucionária libertadora que surgirá uma nova cultura mundial, alternativa, muito mais rica do que a atual cultura imperial”. (DUSSEL, 1977, p. 102).
Porém, o sistema produzido pelos opressores cria o que Freire (2015) denomina cultura do silêncio, o medo da liberdade presente no oprimido, introjeção pelos castigos históricos. Assim, conclui-se a “[…] importância da animação sociocultural como modelo e metodologia de intervenção social e comunitária […]” (CARO, 2012, p. 65), que no contexto da Pedagogia Social, buscando, resgatar o mundo simbólico da cultura popular dos povos latino-americanos.
É baseado nesses pressupostos de um viável busca e fortalecimento da identidade histórica-cultural de povos que habitam a América é que o educador social através de diversos recursos do campo das artes cria canais que vão ao encontro do centro de interesse de cada educando, ajuda-o a conscientizar-se mobilizando seu processo criativo que ao externar sua produção comunicantes ressoam no cotidiano afetando outro em um processo dialetizador.
O sociocultural torna-se uma importante expressão do ser humana, sendo assim, tem um valor ímpar no desenvolvimento da formação de crianças, adolescentes e jovens, pois a arte contribui para o senso estética, criatividade, beleza, analítico, dialógico e crítico visto que o sociocultural nos ajuda a ler o mundo. Como síntese das linhas que delineia a cartografia da Pedagogia Social latino-americana, observa-se na nuvem de palavras 5, as frequências que a constitui:
Considerações, o que foi possível cartografar?
A cartografia ocorre a partir de uma configuração de elementos, forças ou linhas que atuam simultaneamente. As configurações subjetivas não apenas resultam de um processo histórico que lhes molda estratos, mas portam em si mesmas processualidades, guardando a potência do movimento dialetizador.
O rizoma deste cartografar que remete as expressões das artes sistematizado pela Pedagogia Social através do domínio sociocultural, potencializando os processos de apropriação da realidade, da história do objetivo e do subjetivo, tornando-se este o princípio fundamental na estruturação do território-rede que pulsa sob a dinâmica da vida e se comunica em síncrese, síntese e expressão da síntese.
O domínio sociocultural da Pedagogia Social reúne, portanto, as condições para a geração de um conhecimento voltado a compreender as tramas da vida cotidiana e as formas de convivência humana. Busca propostas eficazes para incidir na construção dos novos homines e ethos, através de uma educabilidade interdisciplinar, que considera a ontologia do ser social e a promoção de processos educativos interligados a cidadania, justiça social, e lutas contra-hegemônicas.
O educador social por meio dos recursos da própria comunidade e da vida do educando tornar-se um mediador, apresentando as técnicas necessárias para enriquecer o guia interior, favorecendo a expressão do viver, da dinâmica do cotidiano, das aprendizagens, apropriações; e potencializando o processo de imaginação, intuição e criação, a obra se torna uma poética ético-política e crítica da sua própria história e a do seu grupo de modo a criar paradigmas civilizatórios.
Referências
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Notas
[i] Disciplina optativa do programa de Pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Ministrada no segundo semestre de 2021 pela Profª. Drª. Isabel Orestes Silveira.
[ii] https://voyant-tools.org/
[iii] Tais quais os camponeses como: Via-Campesina e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; operários por exemplo: Central Única dos Trabalhadores do Brasil, Plenário Intersindical de Trabalhadores e Convenção Nacional de Trabalhadores do Uruguai, Congresso Constitutivo da Central Unitária de Trabalhadores da Colômbia, Confederação Geral do Trabalho da Argentina, União Nacional de Trabalhadores do Mexico, entre outros; movimentos sociais como: Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, Movimento dos Atingidos por Barragens, Corriente Clasista y Combativa, Movimiento Independiente de Jubilados y Desocupados, Frente Popular Darío Santillán; pastorais por exemplo: Comissão Pastoral da Terra, Pastoral do Menor, Carcerária, Criança, Operario, Mulher marginalizada, Comunidades Eclesiais de Base, Conselho Indigenista Missionário, dentre outros; comunidades tradicionais – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, Aliança Bolivariana Para os Povos da Nossa América, Exército Zapatista de Libertação Nacional, Confederación de Nacionalidades Indígenas del Ecuador, Confederación del Pueblo Kichwa , Confederación de Nacionalidades Indígenas de la Amazonia Ecuatoriana, Centro de Pensamiento y Culturas Andinas por la Construcción del Estado Plurinacional, entre outros; juventude por exemplo: Organização Continental Latino-Americana e Caribenha de Estudantes, União Nacional dos Estudantes, União Socialista da Juventude, Levante Popular da Juventude, entre outros; mulheres como: mães de maio, margaridas, movimento feminista etc.
[iv] Enrique Dussel, filosofo argentino radicalizado desde 1975 no México. Expoente da Filosofia da Libertação, vem produzindo reflexões decoloniais latino-americana sobre temas como filosofia, política, ética e teologia.