A origem da Bossa Nova: um encontro entre o Samba e o Jazz

artigos Edição 38

The origin of Bossa Nova: an encounter between Samba and Jazz

ISERN, Laura Hernandez. A origem da Bossa Nova: um encontro entre o Samba e o Jazz. In: Aguarrás, vol. 8, n. 38. ISSN 1980-7767. São Paulo: Uva Limão, JUL/DEZ 2021. Disponível em: <http://aguarras.com.br/a-origem-da-bossa-nova/>. Acesso em: [current_date format=d/m/Y].

 

Resumo

Nascida a partir de diversas misturas e hibridismos culturais que povoam nosso país, a música popular brasileira emergiu dessa mistura do encontro fervilhante de sons trazidos pelos africanos com a tradição europeia já instaurada pelos imigrantes aqui no Brasil. Levando esse contexto em conta, como exposto na obra de Pedro Bustamante, o presente trabalho faz um estudo de mais um hibridismo cultural nascido no Brasil: a bossa nova. Em meados da década de 30, durante o período modernista, houve um grande incentivo ao enaltecimento da cultura popular brasileira – encabeçado por Mário de Andrade. Isso, aliado ao período de transição e popularização do acesso à rádio, “preparou o terreno” para que músicos como João Gilberto, Vinícius de Morais e Tom Jobim, em meados da década de 50, pudessem estudar e experimentar incorporar novos sons trazidos do exterior ao samba. Em sua publicação, Fabio Saito Santos expõe como os “bossa novistas” se incorporaram do som do cool jazz e o uniram ao samba para criar a Bossa Nova. O presente trabalho também perpassa a trajetória de criação da bossa nova, trazendo autores como Santuza Cambraia Naves, e as origens do jazz, baseando-se nas obras de Roberto Muggiati e Bryan Mccann.

Palavras-chave: Bossa Nova. Jazz. Hibridismo cultural. Samba. Cultura popular brasileira

 

Abstract

Born from various cultural mixtures and hybridisms that populate our country, Brazilian popular music emerged from this seething mixture of the sounds brought by Africans with the European tradition already established by immigrants here in Brazil. Taking this context into account, as shown in the work of Pedro Bustamante, this work is a study of yet another cultural hybridism born in Brazil: Bossa Nova. In mid-1930s, during the modernist period, there was a great incentive for the exaltation of Brazilian popular culture – headed by Mário de Andrade. This, alongside with the period of transition and popularization of access to radio, “prepared the ground” for musicians such as João Gilberto, Vinícius de Morais and Tom Jobim, during 1950s, to be able to study and incorporate new sounds brought from abroad to samba. In his publication, Fabio Saito Santos exposes how Bossa Nova musicians incorporated the sound of cool jazz and joined it with samba to create Bossa Nova. The present work also permeates the trajectory of creating bossa nova, bringing authors such as Santuza Cambraia Naves, and the origins of jazz, based on the works of Roberto Muggiati and Bryan Mccann.

Keywords: Bossa Nova; Jazz; Cultural hybridism; Samba; Brazilian popular culture.

 

Introdução

A música popular brasileira – assim como nossa cultura popular no geral – é grandemente composta pelo que Pedro Bustamante, autor de Do Samba à Bossa Nova, chama de hibridismo. Ou seja, nascida da mistura de diversas culturas distintas que povoam nosso país. As mais influentes delas, a africana e a europeia. Foi após a chegada dos negros escravizados que a música ocidental passou a se apropriar dos ritmos africanos e, a partir disso, criar novos estilos musicais totalmente brasileiros.

Em meados da década de 30, durante o período modernista, a cultura popular brasileira ganhou força e a busca das nossas raízes nacionais virou a prioridade de artistas da época. Isso aliado ao momento de transição vivido pela rádio no Brasil, em que o dispositivo passava de apenas um transmissor de informação para uma fonte de entretenimento. Assim, a música popular brasileira ganhava espaço entre as massas. Foi dentro desse contexto que, décadas depois, pudemos observar o surgimento de um novo estilo musical, fruto de mais um hibridismo cultural: a bossa nova.

Seguindo a tradição antropofágica da construção da música popular brasileira, os bossa-novistas se apropriaram de repertórios anteriores, como o maxixe e o samba, porém voltando-se para a pesquisa de atualizações musicais, compatível com as linguagens que se desenvolviam no exterior. A música vivia um brilhante momento de busca por atualizações que acompanhassem a modernização dos meios de comunicação. Neste universo de novidades, é unânime dizer que uma grande influência na criação da bossa nova foi o cool jazz americano da década de 40, aliado a uma releitura do samba (BRITO, 1986 apud. SANTOS, 2006).

Assim como o samba e outros estilos musicais brasileiros, o jazz nasceu de diversas incorporações, trazendo consigo grande influência dos sons africanos, importados também pelos escravos que chegaram à América do norte. O choque da bagagem trazida pelos africanos com a tradição europeia foram o estopim para o desenvolvimento do novo estilo musical.

O fenômeno mundial da música popular, em meados da década de 30, aliado à evolução tecnológica – que tornou o som mais acessível – consolidou uma era de expansão musical em que se apropriava do passado para então reinventá-lo.

O surgimento da Música Popular brasileira

Em citação a Mário de Andrade – grande defensor do “discurso a respeito da nacionalização da música no Brasil” (CONTIER, 1994) – Pedro Bustamante, autor de Do Samba à Bossa Nova, contextualiza o caráter do que chama de “arte nacional” que a música popular brasileira traz consigo. Com isso, expõe o grande hibridismo que deu origem à música do Brasil, feita das grandes misturas e encontros de culturas que formaram nosso país.

Nascida, sobretudo, da mescla de elementos da música africana com os ritmos trazidos pelos colonizadores da Europa, por inúmeros processos de hibridismo cultural, a música popular no Brasil, sempre assimilando e incorporando ao seu sistema o que lhe é externo (BUSTAMANTE, 2011).

Ainda segundo o autor, esse processo ocorreu, por exemplo, em meados de 1840 com a absorção dos ritmos africanos na música ocidental, gerando novos ritmos como o maxixe. E aí reside a “grandeza da música popular brasileira”, fruto da “pujança da cultura africana” misturada ao “ambiente colonial”, resultando em algo completamente novo: brasileiro. É possível dizer, portanto, que a música brasileira é “produto de diversos processos de hibridismo” reunindo “os primeiros elementos de uma arte brasileira”, que traz consigo todas as culturas envolvidas no processo de formação do Brasil, sobretudo a grande influência da cultura africana. Esse novo som brasileiro, com a interferência do batuque afrodescendente, possibilitou “novos ritmos, nem europeus, nem africanos […] que pouco a pouco desestabilizam o discurso autoritário da música do colonizador” (BUSTAMANTE, 2011).

A grandeza da música popular brasileira é resultado da incorporação da cultura negra, que pelos processos de hibridismo se infiltra no ambiente colonial e semeia uma cultura nova […]. Inicialmente, através do exercício rítmico, na sutileza da síncope, o negro subverte a enquadratura rítmica europeia, marcial e épica e começa articular a sua alteridade. (BUSTAMANTE, 2011, p.13)

Durante as décadas de 20 e 30, Mário de Andrade, como diretor do Departamento Municipal de Cultura de São Paulo, “defendia a pesquisa do folclore como a principal fonte temática e técnica do compositor erudito preocupado com a criação de uma música nacionalista e brasileira” (CONTIER, 1994). O período modernista, do qual o artista fazia parte, é caracterizado por um grande enaltecimento da cultura popular brasileira.

Além do movimento de enaltecimento da cultura popular brasileira e busca pelas nossas raízes, é importante ressaltar também a importância da transição da rádio, em meados da década de 30, na forma como o brasileiro consumia música. Isso porque o dispositivo passou de um mero transmissor de informação para uma fonte de entretenimento. Essa mudança radical no conteúdo apresentado pelas rádios foi responsável pela “troca da música erudita, predominante na programação dos anos de 1920, pela canção popular, na programação dos anos de 1930” (JOSÉ, ALFED, 2016). Marcos Napolitano, em A Música Brasileira na Década de 50, ressalta que foi essa “popularização” do acesso à rádio – antes mais “voltado para os segmentos médios  da  população  urbana,  sobretudo dos  grandes  centros” – que fez com que o conteúdo veiculado tivesse uma abordagem mais fácil de ser compreendida e consumida pelo ouvinte.

Foi de dentro dessa efervescência cultural que caracteriza a música brasileira que, décadas depois, pudemos observar o surgimento de um novo estilo musical, fruto de mais um hibridismo cultural. Em meados da década de 50, nomes como João Gilberto, Tom Jobim, Newton Mendonça e Vinícius de Morares entregavam ao mundo uma nova estética musical, que viria a ser mundialmente conhecida como Bossa Nova. A década de 30, portanto, pavimentou o caminho que seria percorrido pelos músicos bossanovistas.

O Surgimento da Bossa Nova

O gênero rompia com o caráter de “excesso, nas suas mais diferentes manifestações,” que moldava a música popular brasileira anteriormente (NAVES, 2001). Ainda segundo a autora, a Bossa Nova trouxe uma sofisticação instrumental para a música, substituindo a simplicidade dos instrumentos regionais de antes.

A canção popular passou a receber orquestrações ricas de sopros e cordas, em que os instrumentos não eram mais utilizados para ‘dar o tom’ e, sim, de maneira contrapontística, para possibilitar uma relação mais complexa entre o intérprete e os instrumentos. (NAVES, 2001).

Seguindo a tradição antropofágica da música popular Brasileira, os bossa-novistas, como coloca Santuza Cambraia Naves, se apropriaram de repertórios anteriores como os “samba-canções” e “tangos abrasileirados”, porém voltando-se para a pesquisa de atualizações musicais, “compatível com as linguagens que se desenvolviam tanto no exterior (principalmente a do jazz norte-americano), quanto no Brasil, particularmente no Rio” (NAVES, 2001).

João Gilberto, como explica Naves, um dos grandes nomes do movimento musical, foi responsável por fazer uma “releitura do samba tradicional”, principalmente na maneira inusitada de unir a voz e o violão. Uma complementando a outra e oferecendo um certo protagonismo para o violão. A orquestra dá lugar a instrumentos pontuais e a composição é pautada por um tom mais intimista. O mesmo ocorre com o tom da voz: “pequena, que dialoga com o instrumento musical em vez de exibir sua própria potência” (NAVES, 2001).

Para José Estevam Gava autor de Momento Bossa Nova, o termo “bossa nova” ultrapassa os limites do significado literal, podendo ser referido como um fenômeno que assolou o país no final dos anos 1950: a invasão bossanovista.  Neste contexto, o Brasil conhecia “um registro musical intimista semelhante ao do cool jazz”, buscando harmonizar-se “com o ideário de racionalidade, despojamento e funcionalismo que teria caracterizado várias manifestações culturais do período” (NAVES, 2000). A palavra para o momento musical vivido no Brasil daquela época era “ruptura” e “experimentação”.

Parte-se para um tipo de experimentação musical bastante afinada com as propostas da poesia concreta. Assim, por exemplo, vemos que as músicas inaugurais da nova tendência musical aparecem como canções-manifesto. Desafinado (1958) e Samba de uma nota só (1960) […] introduzem um tipo de procedimento em que letra e música, ao mesmo tempo em que se comentam mutuamente, fazem alusões às novidades musicais (NAVES, 2000).

A bossa nova, para além das experimentações musicais que trouxe, criou também uma abordagem mais descolada para lidar com a temática amorosa. Dessa forma, a música abre um espaço para diferentes leituras e propostas, dando foco à interpretação dedicada pelo artista à canção. José Miguel Wisnik, em seu livro o Coro dos contrários (1983), citado por Santuza Cambraia Naves, aborda ainda o caráter modernista da construção desse novo ritmo: “de um lado, um rigor construtivo, como o de Webern, que recorre ao mito do engenheiro, e de outro, o recurso à bricolagem, tão caro a Stravinski, Villa-Lobos e outros compositores da época.” Com isso, o autor procura identificar o compositor bossanovista como uma espécie de engenheiro, construindo peça a peça “o seu próprio discurso”. No entanto, Santuza argumenta que esse “mito do engenheiro não teve lugar na experiência modernista brasileira porque tanto os músicos quanto os poetas do movimento tendiam a assumir uma postura antropofágica”, concluindo, portanto, que esse “engenheiro” citado por Wisnik – no caso da bossa nova – teria um caráter mais “incorporativo de realizar suas operações, utilizando sempre os instrumentos já disponíveis”. Dentro desta discussão, Santuza busca ressaltar a ideia de que todos os artistas dessa era partilhavam uma visão do Brasil como uma fonte inesgotável de “informações culturais, tanto arcaicas quanto contemporâneas, tanto regionais quanto universais”.

João Gilberto incorporou repertórios tradicionais, recriando, rítmica e harmonicamente, sambas de diversos autores por meio da fusão com o jazz. Por outro lado, ele rompeu com os gêneros associados ao excesso em várias de suas manifestações na música popular, como o exibicionismo operístico (expressão cunhada por Augusto de Campos, 1968) e os arranjos que recorriam a orquestrações grandiosas (NAVES, 2000).

A história de João Gilberto e da Bossa Nova, em diversos momentos, se mistura. Não por acaso: o músico é considerado por muitos como o precursor desse novo estilo musical. Como coloca Santuza Naves em seu livro Da Bossa Nova à Tropicália, a trajetória do artista é marcada por uma “obsessão” em criar um novo estilo musical compatível com sua visão moderna de mundo, “como um momento histórico marcado pela simplicidade, exigindo o despojamento como princípio estético básico”. Tanto ele quanto Tom Jobim – outro grande nome desse período – deixaram suas pegadas na bossa nova, cada qual à sua maneira:

É como se ambos interpretassem o momento histórico em que viviam de maneiras diferentes: João à maneira construtivista que marcava a década […] e Tom a partir do ponto de vista do modernismo musical, representado, por exemplo, por Villa Lobos (NAVES, 2001).

O contexto em que surge a bossa nova era propício para as novidades, já que, como relata no livro, existia “algo no ar”, como se todos procurassem por atualizações. Encabeçando esse novo movimento, João Gilberto inventa a famosa “batida” no violão e traz às suas músicas uma conexão entre letra e voz nunca vista antes. É na forma complexa de se unir todos os elementos na composição de uma música, que a bossa nova mostra suas inspirações no jazz.

Para alguém habituado às experimentações jazzísticas, letra e música em franca interação, remetem a experimentos vanguardistas que violam os padrões convencionais de recepção musical. (NAVES, 2001).

Neste universo de novidades, como coloca Santuza, é unânime dizer que uma grande influência foi o cool jazz americano da década de 40 “sobre os músicos que se propõem a recriar o samba nativo” (NAVES, 2000).

A Origem do Jazz

Foi das ruas de New Orleans, no início do século XX, que ouve-se um novo estilo musical, de criação reivindicada por Jelly Roll Morton, pianista local que dizia ter inventado o jazz em 1902 – ainda sem esse nome (MUGIATTI, 2017). Ainda segundo Roberto Mugiatti em O Que é Jazz, “a palavra jazz apareceu impressa pela primeira vez num jornal da Califórnia, o San Francisco Call. Apesar das diversas versões sobre sua real origem, é unânime o entendimento de que o estilo musical gira em torno da improvisação – apesar de existirem inúmeras composições do gênero escritas nota por nota em partituras e, nem por isso, deixam de ser jazz.

Mugiatti acrescenta em sua obra ainda que o jazz traz consigo diversas incorporações “de certas práticas africanas, como embelezar o tema e tecer variações em torno dele”. O autor atesta que o ritmo no jazz “é o resultado da fusão da polirritmia africana com os ritmos de origem europeia”, causando no ouvinte uma reação bastante corporal à música.

A origem do jazz nos remonta ao ato violento “com o negro arrancado da África para trabalhar em outra terra. […] O trauma da escravidão marcou sucessivas gerações e foi um fator importante no aparecimento do jazz”. A bordo dos navios negreiros, muitos escravos tinham a permissão de carregarem seus instrumentos, levando-os, portanto, – juntamente com sua vasta herança cultural africana – para a América. No entanto, chegados nas novas terras, muitos foram privados de utilizarem instrumentos pelos seus senhores e feitores, já que estes temiam que os escravos os utilizassem para “fins de comunicação ou código”. Essa proibição “explica em parte o fortalecimento da tradição vocal”. Essa bagagem cultural trazida e o choque com a tradição europeia foram o estopim para o desenvolvimento do novo estilo musical.

Em fazendas e engenhos mais liberais, alguns negros tinham acesso à casa-grande e ao piano do senhor. […] Em certos casos, instrumentistas negros eram chamados a tocar nos saraus da mansão senhorial. Thomas Jefferson foi um dos primeiros a reconhecer a musicalidade dos negros. (MUGGIATI, 1985)

Foi apenas após cerca de 3 séculos de vivência na América que o negro finalmente chegou ao jazz. “Nesse tempo todo, a música que o africano trouxera na sua longa travessia fora submetida a uma infinidade de mutações, absorvendo e modificando outras formas”. Esse fenômeno de fusão cultural, assim como ocorreu no Brasil com o samba, deu origem à efervescência do novo século: com ar de frescor e modernidade, mas carregado de bagagem e influência dos séculos passados.

Jazz e Bossa Nova se encontram

O fenômeno da música popular veio se estabelecer mundo afora – “pelo estabelecimento tecnológico industrial, através da fonografia inicialmente do disco, do rádio e do cinema falado” (BASTOS, 1996). Em meados da década de 30, ainda segundo Rafael José de Menezes Bastos, a música que invade o planeta tem uma lógica global, “caracterizada no plano econômico-político pelo contexto neocolonialista” e, neste contexto, encontra no jazz – e no rock também – um “fulcro”. O momento vivido pela expansão musical era de apropriação do passado para então reinventá-lo. Fabio Saito dos Santos, em Um Estudo das Influências do Jazz na Bossa-Nova (2006), explica também que alguns dos principais processos que contribuíram para o surgimento da Bossa Nova foram “a ascensão das camadas médias urbanas, o intenso fluxo da cultura de massa norte-americana […] e as transformações técnicas ligadas à indústria cultural – que mudaram os meios de produção, distribuição e consumo da música popular”. Esse momento de abertura cultural contribuiu para que a bossa nova surgisse tão cheia de influências do Jazz americano – fenômeno então criticado pelas classes mais conservadoras, que consideravam essa “contaminação cultural” um distanciamento das raízes brasileiras.

Os prenúncios da Bossa Nova podiam ser encontrados na produção de músicos que “não se atinham aos modelos mais tradicionais” […] Ele [Brito], registra o Jazz, o Bebop e o Cool Jazz como grandes influências na Bossa Nova (BRITO, 1986 apud. SANTOS, 2006).

Ainda citando as avaliações de Brito, Fabio cita os principais pilares estéticos do estilo bossanovista, sendo eles a igualdade dos parâmetros musicais, a superação do contraste típico do romantismo alemão, o culto à música popular nacional, o respeito aos músicos brasileiros e a valorização do silêncio. No meio desses pilares, “as ornamentações se tornaram mais diversas”, além das melodias “pouco variadas, insistindo na reiteração de uma mesma nota ou figuração”, característica incorporada pela Bossa Nova que é bastante comum no Jazz. Brito acrescenta mais adiante em seu trabalho que, embora possam ser observadas claras diferenças entre os dois gêneros, é inegável, em termos rítmicos, o “influxo da linguagem do jazz na Bossa Nova”.

Bryan McCann, em A bossa nova e a influência do blues, 1955-1964, vai ainda mais adiante e ressalta também a influência do blues – um dos alicerces da música jazzística – na Bossa Nova. Segundo ele, isso explicaria o tamanho apego dos músicos de jazz americanos ao novo ritmo brasileiro.

A Bossa Nova sempre foi ridicularizada como uma forma de branqueamento do samba, um samba para uma elite mais sofisticada acostumada a tomar coquetéis. Mas os músicos de jazz brasileiros do fim dos anos 50 sabiam que ao incorporar as influências maiores do blues em sua música estariam entrando na fonte principal da música afro-americana. A bossa nova provou ser atraente em parte porque oferecia tanto um novo terreno emocionante para a experimentação da música como um caminho em direção às raízes de uma tradição musical afro-atlântica semelhante (MCCANN, 2010).

Tanto no Brasil quanto nos EUA, a forte influência cultural africana, “recombinada com práticas musicais europeias, produziu tradições semelhantes” (MCCANN, 2010). O autor ainda acrescenta que “escravos africanos e seus descendentes desenvolveram práticas musicais que incorporaram uma roda de gente batendo palma e cantando”, características essas que nos EUA geraram o blues e no Brasil o samba.

A década de 50 foi um período de grande efervescência musical para o Rio de Janeiro. Novas gravadoras surgiam em busca de jovens talentos, enquanto nas boates e ruelas da Praça do Lido, o samba e o jazz se sobrepunham. A música produzida nesses bares e boates era repleta de improvisações instrumentais, contrastando com “a abordagem ‘cool’ desbravada em 1957 por João Gilberto, com comedimento vocal, um ‘suingue’ suave e sem solado instrumental” (MCCANN, 2010).

Já no fim da década, o estilo de João Gilberto, particularmente suas interpretações da música de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, já era reconhecido por ter definido um novo gênero chamado Bossa Nova. Considerando suas reservas, há uma certa tentação em rotular de Bossa Nova apenas a música que segue diretamente o modelo João Gilberto/ Tom Jobim/ Vinicius e chamar a música de trios de piano que tocavam de improviso nos clubes de Copacabana de samba-jazz (MCCANN, 2010).

Mccann utiliza em sua obra a descrição do musicólogo André Luis Scarabelot sobre a fundação da Bossa Nova e as origens do seu som. Esse estilo musical incorporou três pilares em sua formação: a interpretação única e suave de João Gilberto, o som erudito de Tom Jobim e a influência dos Jazzistas de Copacabana.

Conclusão

Desde sua origem, a música brasileira traz consigo um grande hibridismo, sendo composta de misturas e encontros de culturas que formaram nosso país. Isso ocorreu com muita intensidade com a influência que os ritmos africanos tiveram na música ocidental, gerando novos ritmos brasileiros.

O enaltecimento da arte nacional foi muito fomentada durante as décadas de 20 e 30, encabeçado pelo modernista Mário de Andrade. Além disso, o período foi decisivo para a transição da rádio e da forma como o brasileiro consumia música. Isso porque o dispositivo passou de um mero transmissor de informação para uma fonte de entretenimento, tornando o consumo musical um ato mais acessível. Acompanhando esse processo, a música erudita foi lentamente sendo substituída pela música popular.

Foi de dentro dessa efervescência cultural que, décadas depois, surgia um novo estilo musical, fruto de mais um hibridismo cultural: a bossa nova. Apesar de popular, a bossa nova trouxe uma sofisticação instrumental para a música brasileira. Não diferente dos estilos que a sucederam, a bossa nova também se apropriou de repertórios anteriores como os “samba-canções” e “tangos abrasileirados”, porém voltando-se para atualizações musicais e uma certa internacionalização do som brasileiro, “bebendo muito na fonte do jazz”. Para muitos estudiosos, é possível caracterizar o período como a “invasão bossanovista”, em que o Brasil conhecia um estilo musical semelhante ao cool jazz. Era um momento de ruptura e experimentação na música nacional, em que músicos buscavam incessantemente por uma atualização. Encabeçando esse movimento, João Gilberto inventa a famosa “batida” no violão e traz às suas músicas uma conexão entre letra e voz nunca vista antes, mostrando suas fortes inspirações no jazz. Como coloca a autora Santuza Cambraia, é unânime dizer que uma grande influência foi o cool jazz americano da década de 40 “sobre os músicos que se propõem a recriar o samba nativo” (2000).

Assim como a música popular brasileira em termos gerais, o jazz tem sua origem na bagagem cultural trazida pelos escravos africanos para a América. A bordo dos navios negreiros, muitos escravos tinham a permissão de carregarem seus instrumentos, levando-os, portanto, juntamente com sua vasta herança cultural africana. O som do batuque africano, ao encontrar as tradições europeias já consolidadas na América, deu origem a um som novo, fruto de um hibridismo entre duas culturas distintas.

A chegada da tecnologia e o fácil acesso a conteúdo musical através das rádios, permitiu o fenômeno da música popular mundo afora. O momento vivido pela expansão musical era de apropriação do passado para então reinventá-lo. Processos esses que, juntamente com o intenso fluxo da cultura de massa norte-americana, contribuíram para o surgimento da Bossa Nova. Logo, foi esse momento de abertura cultural que contribuiu para que o estilo surgisse tão cheio de influências do Jazz americano.

 

Referências

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CONTIER, Arnaldo Dayara. “Mário de Andrade e a Música Brasileira.” Revista Música, vol. 5, no. 1, 1994, revistas USP, https://www.revistas.usp.br/revistamusica/article/view/55070. Acesso em: 20/08/2021.

MCCANN, Bryan. “A bossa nova e a influência do blues, 1955-1964.”. Scielo, https://www.scielo.br/j/tem/a/zx4p6jdh54wXPptBBvkvJKt/abstract/?lang=pt. Acesso em: 24/08/2021.

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NAPOLITANO, Marcos. “A música brasileira na década de 1950.” https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/13830/15648

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