Boal’s cartographies of popular Latin American theater in the 1960s and 1970s
SILVA, Raul Moraes. Cartografias boalinas do teatro popular latinoamericano das décadas de 1960 e 1970. In: Aguarrás, vol. 8, n. 38. ISSN 1980-7767. São Paulo: Uva Limão, JUL/DEZ 2021. Disponível em: <http://aguarras.com.br/cartografias-boalinas/>. Acesso em: [current_date format=d/m/Y].
Resumo
O presente artigo tem como objetivo apresentar a percepção de Augusto Boal (1979) acerca de produções latinoamericanas de teatro popular das décadas de 1960 e 1970. Para tal, construiu-se um banco de dados com elementos, técnicas, personalidades e encenações populares do período, conforme o relato do teatrólogo. A partir deste banco de dados, coletaram-se documentos, como fotografias e cartazes, que foram utilizados na produção de duas modestas cartografias artísticas, colagens digitais, cujos elementos imagéticos serviram, didaticamente, para compor a narrativa através da qual a percepção de Boal sobre esse tipo de teatro é apresentada.
Palavras-chave: Teatro popular latinoamericano. Augusto Boal. Cartografias artísticas. História do teatro.
Abstract
This article aims to present Augusto Boal’s (1979) perception of Latin American popular theater productions in the 1960’s and 1970’s, according to the playwright’s report. To this purpose, a database with elements, techniques, characters, and enactments was produced. From this database, documents were collected, such as photographs and posters, which were used in the production of two modest artistic cartographies, digital collages, whose imagery elements didactically serve to compose the narrative through which Boal’s perception of this kind of theater is presented.
Palavras-chave: Latin American popular theater; Augusto Boal; Artistic cartographies; History of theater.
Introdução
É possível perceber, na historiografia do teatro, especialmente aquela produzida durante o século XIX, certa tendência à valorização de determinadas formas teatrais em detrimento a outras. Nesse sentido, o Teatro Popular, por estar associado às camadas menos abastadas da sociedade, foi frequentemente tratado como um gênero menor, ingênuo, que aborda temas sem muita relevância ou profundidade. É fato que as produções de Teatro Popular não contam com dispendiosos recursos cenotécnicos, ou mesmo casas de espetáculo que as abriguem, dado que boa parte dessas encenações acontecem em espaços públicos, circos, praças e feiras. Ainda assim, mesmo com escassos recursos, o Teatro Popular não perde ao destacar a relevância artística, política, reflexiva e crítica que faz da sociedade. Pelo contrário, desde Brecht[1] (1898-1956) o interesse em trazer ao palco formas populares de teatro como ferramenta didática, de diálogo e conscientização política da população, tem crescido e se diversificado (COSTA, 1989). O que não significa a completa superação do preconceito contra o Teatro Popular.
Se, mesmo em um contexto europeu, os saberes envolvidos na produção de formas populares de teatro têm sido desvalorizados, o que dizer do Teatro Popular que se produz no chamado Sul Global, visto que:
O colonialismo, para além de todas as dominações por que é conhecido, foi também uma dominação epistemológica, uma relação extremamente desigual entre saberes que conduziu à supressão de muitas formas de saber próprias dos povos e nações colonizados, relegando muitos outros saberes para um espaço de subalternidade. (SANTOS; MENESES, 2010, p.19)
Nesse sentido, o Teatro Popular feito na América Latina, região marcada profundamente pelo colonialismo, enfrenta o duplo desafio de se estabelecer tanto em frente ao subjugo do que é popular, quanto à dominação dos saberes do Norte.
Ciente desses desafios e expoente do Teatro Popular Latinoamericano, é que Augusto Boal[2] (1931-2009) escreve o livro: Técnicas latino-americanas de teatro popular: uma revolução copernicana ao contrário, durante o tempo de exílio. Nessa obra, objeto de interesse desse texto, Boal (1979) revela técnicas utilizadas na cena Teatral Popular Latinoamericana baseadas em suas experiências na região. E faz isso tanto na perspectiva de espectador quanto na perspectiva de produtor desse tipo de teatro, durante as décadas de 1960 e 1970, momento marcado por uma ascensão de regimes ditatoriais militares e caça ao Comunismo na região.
Ademais, com um discurso ferino típico daqueles que enfrentaram a tortura e o exílio, Boal (1979) denuncia as consequências do Imperialismo cultural e econômico estadunidense e esboça – demonstrando sua enorme capacidade de articulação entre saberes multidisciplinares – a definição de conceitos como Cultura, Educação e Linguagem, a partir de uma perspectiva que chama de Revolução Copernicana ao Contrário. Similar à valorização que, mais recentemente, Santos e Meneses (2010) vão propor ao observarem-se as Epistemologias do Sul. A Revolução Copernicana ao Contrário seria justamente a tomada de consciência Latinoamericana sobre seu papel como agente produtor de conhecimento, não mais como interpretações não tão bem-sucedidas do que se produz nos países do Norte, mas sim como sujeitos da própria história. “Algo muito importante está acontecendo na América Latina: os povos descobrem que são o sujeito da história, o motor da sociedade, o centro do nosso universo: NÃO MAIS SATÉLITES” (BOAL, 1979, p. 89).
Desta maneira, para compreender a mentalidade artística e crítica de Boal é que se busca responder à pergunta: de que maneira os relatos acerca das Teatralidades Populares Latinoamericanas, presentes na obra boalina, poderiam ser representados em termos de cartografias artísticas? Dada a amplitude da investigação, o objetivo desse artigo será realizar duas cartografias modestas que possam, de alguma maneira, contribuir na compreensão do contexto sociocultural e da obra Boalina no período.
É importante destacar que a opção pela construção de cartografias artísticas se deu em virtude da Arte, em seu encontro com a Cartografia, oferecer uma maneira potente de apreender e de representar, através da linguagem visual e simbólica, certos fenômenos que escapam à objetividade científica e que apresentam nuances complexos e rizomáticos (GILLES; GUATTARI, 2011).
Assim, a construção dessas duas cartografias se deu da seguinte maneira: estabeleceu-se um banco de dados referente às manifestações do teatro popular latino-americano, em especial o Brasil, das décadas de 1960 e 1970, conforme os relatos de Boal (1979). E, a partir de tal banco de dados, em uma pesquisa documental, buscaram-se elementos como fotografias e cartazes que serviram de material para a consecução de duas colagens digitais, duas cartografias artísticas autorais.
A cada uma delas foi atribuído um tema, em função de uma opção didática e estética, que funcionou como fio condutor na seleção dos documentos coletados que fariam parte das colagens, bem como da análise que se desenvolveu sobre elas. Ainda assim, tais produções visuais estão imbricadas, de modo que um mesmo elemento pode aparecer em mais de uma cartografia. Os temas são: identidade e cultura brasileira, cujos elementos compositivos, não exclusivamente teatrais, contribuem ao que o autor (BOAL, 1979) chama de arsenal de técnicas populares de teatro, além de contribuírem com a compreensão do contexto cultural no qual as produções teatrais brasileiras da época eram produzidas. Já o segundo tema, Teatro boalino, apresenta peças teatrais, produzidas pelo diretor, que tiveram destaque tanto em um contexto brasileiro, quanto na cena internacional.
Ainda assim, mesmo com temas distintos, as duas cartografias artísticas compartilham um elemento comum, escolhido como imagem estética pelo autor pesquisador. Sobreposto sobre as imagens, as fronteiras geopolíticas da região latinoamericana aparecem com o eixo norte-sul deslocado da posição mais convencional, cujo Norte consta sempre na parte superior. Esse deslocamento se dá em referência à obra América Invertida de Torres Garcia (1934), na qual o artista, ao inverter o eixo norte-sul do mapa, questiona a hegemonia e a dominação dos países do Norte, em função de uma valorização dos saberes e fazeres do sul global latinoamericano. Vale dizer que o argumento da obra de Garcia se relaciona à ideia de “revolução copernicana ao contrário” proposta por Boal, e, portanto, opera como um símbolo da ideia de decolonialidade (SANTOS; MENESES, 2010), presente no pensamento de ambos os artistas. Diferentemente do mapa proposto por Garcia (1934), que, apesar de invertido, mantinha o eixo norte-sul na vertical, o mapa que se sobrepõe às imagens coladas nas cartografias propostas neste texto apresenta tal eixo levemente inclinado à esquerda em referência à posição política de Boal apreendida em sua obra. Também difere da obra de Garcia (1934) a cor selecionada para compor esta produção. A opção pelo vermelho se deu em razão do que diz Boal (1979, p. 18) sobre a região: “A América Latina é um continente vermelho: Rios de sangue”, em referência à relatada violência colonial e imperialista e à sua reação, de luta e resistência, que tem sido a tônica da região nos últimos séculos.
Isso posto, a seguir apresenta-se a primeira cartografia artística latino-americana cujo tema é identidade/cultura.
Identidade e cultura brasileira
Conforme exposto, a imagem apresenta personagens, lugares, ícones e grupos cuja presença compunham a paisagem identitária, o contexto cultural, no qual as produções teatrais brasileiras da época eram produzidas.
Na parte superior esquerda, vemos Gilberto Gil segurando um violão durante um ensaio da peça Arena Canta Bahia (1965), dirigida por Boal. Sobre o cantor e compositor, Boal (1979, p. 132) escreve:
Gilberto Gil, referindo-se à música brasileira, afirmou que existia uma enorme variedade de formas populares e que ele, pessoalmente, preferia todas.[…] O que de mais importante está acontecendo no Teatro Latinoamericano é, precisamente, sua variedade de pesquisa. Parafraseando Gilberto Gil, eu diria: “Existem muitas formas de se fazer teatro popular latinoamericano. Eu prefiro todas”.
Assim, é possível compreender uma das principais características e virtudes dos gêneros populares, a sua variedade. Além de Gilberto Gil, a variedade da música popular brasileira da época aparece nesta cartografia em fotografias de artistas, citados nos relatos de Boal. Clementina de Jesus, cuja obra fonográfica resgata a memória da conexão afro-brasileira em seus sambas, jongos, corimás e cantos de trabalho, aparece segurando o microfone, ao lado de Gilberto em um de seus shows em 1972. Ainda na parte superior, a capa do álbum O povo canta, lançado em 1961 e gravado pelo CPC, apresenta composições que
[…] representam uma experiência nova na música popular. Nelas, os elementos autênticos da expressão coletiva são utilizados para, através deles, chegar a uma forma de comunicação eficaz com o povo, esclarecendo-o, ao mesmo tempo a respeito de problemas atuais que o atingem diretamente. O povo canta desloca o sentido comum da música popular, dos problemas puramente individuais para um âmbito geral: o compositor se faz o intérprete esclarecido dos sentimentos populares, induzindo-o a perceber as causas de muitas das dificuldades com que se debate. (BERLINK, 1984, p. 26-27).
Os Centros Populares de Cultura (CPC’s) foram desenvolvidos entre os anos de 1960 e 1964 no Rio de Janeiro e em outros Estados brasileiros e constituíam um movimento cultural que reuniu um conjunto de jovens artistas de diversas linguagens, líderes estudantis e pessoas interessadas que compartilhavam o projeto intelectual de elaboração e popularização da popular (BERLINCK, 1984). Não coincidentemente, como nos lembra Boal (1979), o fechamento brusco destes centros se deu no mesmo ano em que ocorria, no país, o golpe militar de 1964.
Ainda na seara da música, abaixo da capa de O povo canta, Nelson Cavaquinho, em um show de 1972. Este importante sambista brasileiro, apresentava-se no restaurante Zi Cartola, local que “possibilitou o surgimento de algumas obras-primas do samba popular de protesto entre 1964 e 1965” (BOAL, 1979, p. 57). O restaurante, aberto na cidade do Rio de Janeiro pelo compositor e sambista Angenor de Oliveira, o Cartola, e sua mulher Euzébia Silva do Nascimento, a Dona Zica, teve seu auge na década de 1960, quando reunia intelectuais contrários ao militarismo que se impunha no país (CASTRO, s.d.). Tanto o músico quanto o logo icônico do restaurante também aparecem nesta cartografia, na parte inferior direita, recortados de uma fotografia tirada em 1975.
Logo acima da imagem de Cartola, outros dois músicos que também frequentavam o Zicartola na época: Nara Leão e Zé Kéti, cuja foto é de 1964. No mesmo período, Nara e Kéti fizeram parte do Show Opinião, espetáculo musical produzido pelo Teatro de Arena e por integrantes do CPC e dirigido por Boal. O musical, concebido em resposta ao golpe militar de 1964, foi montado a partir de uma colagem de fontes diversas: músicas, notícias de jornal, citações de livros, cenas esquemáticas e depoimentos pessoais. Ainda sobre o espetáculo, Boal revela:
Eu queria que escutasse não apenas a música, mas a ideia que se vestia de música! Opinião não seria um show a mais. Seria o primeiro show de uma nova fase. Show contra a ditadura, show-teatro. Grito, explosão. Protesto. Música só, não bastava. Música ideia, combate, eu buscava: Música corpo, cabeça, coração! Falando do momento, instante! (BOAL, 2014, p. 260).
Outros músicos, ainda, constam na cartografia. São eles Jorge Ben, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Os Mutantes e Gal Costa (à esquerda de Nara e Kéti), os quais gravaram, em 1968, o álbum Tropicália ou Panis et Circencis cuja imagem de divulgação é a que aparece na colagem. O título do álbum faz referência ao movimento artístico, cultural e filosófico chamado Tropicália, ou Movimento Tropicalista, que envolveu poetas, cineastas e teatrólogos brasileiros, mas encontrou na música a sua maior vitrine (NAPOLITANO; VILLAÇA, 1998).
Ainda no contexto das marcas identitárias brasileiras, destacam-se dois personagens que, mesmo anteriores ao momento analisado, compunham o imaginário de um Brasil que se observa a partir do exterior. Percebido por Boal (1979, p. 91) como um desses momentos em que “os imperialistas se tornam bonzinhos e nos estendem sua mão amiga”, a política da boa vizinhança foi, a grosso modo, uma iniciativa política e cultural criada pelo governo dos Estados Unidos, em 1933, que consistia em investimento e exportação de tecnologia estadunidense aos países latinoamericanos em troca do apoio político e combate ao comunismo em um contexto do pós Segunda Guerra Mundial. Ou, nas palavras de Boal (1979, p. 92):
Foi a época em que começaram a descobrir que os brasileiros dançavam bem o samba e levaram Carmen Miranda vestida de baiana, com o famoso chapéu de frutas na cabeça, com uvas, maçãs, peras (frutas que na Bahia não existem nem importadas do Rio Negro) e ensinaram à pobre Carmen a cantar o samba ao gosto dos ianques.
A predominância desse “colonialismo cultural”, conforme observado por Boal (1979, p. 96), aparece simbolizado nessa cartografia artística, nas imagens de Carmen Miranda e de Zé Carioca, personagem de Walt Disney de 1940, cujo arquétipo remonta ao estereótipo do “malandro” brasileiro. Ambas as personagens foram colocadas, propositalmente, próximas à fronteira do país que as popularizou.
O carnaval, manifestação cultural cujas raízes históricas, no Brasil, remontam ao período colonial, também está presente nesta cartografia. Na imagem, aos pés de Clementina de Jesus, observa-se um desfile da escola de samba Salgueiro em 1962, cujo enredo foi ‘Chica da Silva’. Entendidos por Boal (1979) como importantes manifestações populares daquele momento, os desfiles de escolas de samba não escapam à sua crítica:
Escreve se uma canção ou uma série, em que se narra algum episódio da história nacional ou a vida de alguma personagem ligada à história ou à cultura brasileira. Os intérpretes sambistas representam essas personagens durante o desfile, enquanto o coro (os acompanhantes) canta a música. É evidente que atualmente o governo intervém na seleção das histórias (“enredos”) através de um sistema descarado de subsidiar com mais dinheiro as escolas que se submetem a cantar algum episódio da história que possa ser comparado, ainda que seja grosseiramente, ao poder atual. (p. 58)
Por fim, o último elemento selecionado para compor essa Cartografia Artística, foi a imagem de um trem de passageiros. Ainda que a fotografia original seja da estação da luz, de 1970, a sua presença na obra faz referência a esse que, durante muito tempo e em diversos lugares diferentes, serviu de palco para o Teatro Invisível de Boal. Sobre essa vertente do Teatro do Oprimido, Boal (1979, p. 141) explica:
Elege-se um tema que seja realmente candente, que interesse verdadeiramente aos futuros espectadores. Com ele faz-se uma pequena peça. Os atores devem interpretar seus personagens como o fariam se a peça fosse representada num teatro convencional e para espectadores convencionais. Quando o espetáculo estiver pronto, ele é representado num local que não é um teatro e para espectadores que não são espectadores.
Esse “trem-teatro”, conforme relata Boal (1979), era representado sem que o público soubesse que se tratava de uma encenação, e partia de uma cena catalisadora de debates, que tratavam de problemas reais, em uma linguagem acessível aos passageiros.
Assim, apresentados os elementos que compõem essa cartografia, parte-se para a próxima, cujo tema é teatro de Boal.
Teatro boalino
Como dito anteriormente, essa segunda cartografia tem como tema a produção própria de Augusto Boal. Os negativos, posicionados às margens da colagem, são de 1965, em uma das encenações da já referida peça Arena Canta Bahia. Destaca-se, nessa produção, o interesse em trazer ao palco não só temas populares, mas a própria voz do povo, na forma de testemunhos coletados a partir da pergunta: “Crêem que a Bahia é verdadeiramente a terra da felicidade?”, somadas a colagens de canções, “fez-se o espetáculo que tinha, então, um caráter de teatro verdade […] Era quase um documentário ilustrado com as canções.” (BOAL, 1979, p. 54).
Não era seleção das mais belas músicas baianas: eu queria mostrar famílias que sofriam seca e buscavam miragens de esperanças. Gente com medo de sonhar colorido: sonhava preto e branco. Sonhavam gotas de orvalho, sem coragem de sonhar oceanos. (BOAL, 2014, p. 268-269)
Além de Boal, e do já mencionado Gilberto Gil, fizeram parte do espetáculo Gal Costa, Tom Zé, Caetano Veloso, Maria Bethânia, entre outros. A cantora baiana, cuja fotografia aparece destacada na parte superior direita, com os braços cruzados sobre as pernas, não tinha mais que 19 anos na “manhã de sua carreira” (BOAL, 2014, p. 264), ocasião em que a fotografia foi tirada, em 1965.
Uma outra encenação que tem destaque nesta cartografia é Arena conta Zumbi, produção na qual Boal inaugura seu “sistema coringa”:
Sistematizei o sistema coringa: nenhum personagem seria propriedade privada de nenhum ator. Todos tinham o direito de interpretar qualquer personagem, homens papéis de mulheres e vice-versa. Atores se destacavam dos personagens, que passavam de mão em mão (BOAL, 2014, p. 266).
Assim, o musical de 1965, catalisado pelo governo que se impunha, inspirava-se na luta e resistência quilombola à ocasião da República Negra, formada por escravizados que se libertavam, para articular a sua própria luta.
Em Zumbi, outra vez, a metáfora. […] Palmares se desenvolveu por um século no nordeste do país até ser destruída por uma coligação de portugueses e holandeses, quando o seu poder comercial ameaçava a hegemonia branca. Palmares resistiu até o último homem. Numância. Queríamos resistir (BOAL, 2014, p. 267).
A colagem como técnica do Teatro Popular aparece mais uma vez, na “transcrição literal de um diário do capitão João Blaer, que tentou a primeira invasão à República Negra de palmares, no Brasil, no séc XVII” (BOAL, 1979, p. 53), em uma das cenas mais contundentes da peça. Zumbi garantiu o sustento do grupo mesmo em tempos de crise, visto que “durante anos, quando um espetáculo não atraia público, voltava Zumbi: o teatro, magicamente, transbordava” (BOAL, 2014, p. 267-268). E foi encenado em diversos países, inclusive nos Estados Unidos, após a assinatura do Ato Institucional nº 5, em 1968, e o acirramento da repressão. Nesta cartografia, a encenação aparece representada por um de seus cartazes publicitários, na ocasião em que era apresentada em Nova York, por meio de um recorte do rosto de Zumbi, em vermelho, nesta que é uma das representações gráficas mais conhecidas do personagem histórico. Sua localização, ao centro das fronteiras brasileiras, aponta para a importância que a encenação teve para o grupo, bem como para a notoriedade que a discussão racial e as consequências da escravização tiveram, e ainda têm, em território nacional.
Ainda sobre Zumbi, fizeram parte do elenco Gianfrancesco Guarnieri, Lima Duarte, Milton Gonçalves, que aparece nesta cartografia com os braços estendidos para cima, entre outros. Milton, vale destacar, além do trabalho junto ao Arena, também fez parte do Teatro Experimental do Negro (TEN), concebido por Abdias do Nascimento, em 1941, após o impacto de perceber que, até então, os papéis de personagens negros que tinham alguma importância, ou grande carga dramática em uma encenação, eram representados por atores ou atrizes brancos pintados de preto, cabendo aos atores negros apenas “papéis ridículos, brejeiros e de conotações pejorativa” (NASCIMENTO, 2004, p. 209). Sobre isso, Abdias relata:
[…] Essa constatação melancólica exigiu de mim uma resolução no sentido de fazer alguma coisa para ajudar a erradicar o absurdo que isso significava para o negro e os prejuízos de ordem cultural para o meu país. Ao fim do espetáculo, tinha chegado a uma determinação: no meu regresso ao Brasil, criaria um organismo teatral aberto ao protagonismo do negro, onde ele ascendesse da condição adjetiva e folclórica para a de sujeito e herói das histórias que representasse. (NASCIMENTO, 2004, p. 210)
Mais uma vez, o Teatro Invisível aparece representado nessa cartografia visual autoral por meio de um cartaz, de fundo amarelo, localizado junto ao país no qual essa vertente teatral foi concebida, a Argentina. Curiosamente, esse cartaz nos lembra que para que haja, verdadeiramente, o Teatro Invisível o público não pode saber que se trata de teatro. Tanto é que o teatrólogo, ao perceber que a imprensa italiana havia divulgado os locais, horas e datas em que seriam realizadas as apresentações, conforme é possível perceber no referido cartaz, decidiu mudar seus locais de apresentação. Assim, essa comunicação visual torna-se o registro material de um teatro que nunca ocorreu. Ou melhor, ocorreu, em outro espaço, para manter a sua “invisibilidade”.
Torquemada[3], uma outra encenação escrita durante o tempo em que Boal ficou preso pela ditadura, é representada nesta cartografia por um recorte da fotografia tirada em Nova York, em 1971, em uma das ocasiões em que foi apresentada. Tanto nessa cartografia, quanto na cena que ela registra, é possível observar como se dava uma das principais formas de tortura empregadas por Sérgio Fleury, delegado encarregado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de São Paulo, e por seus subordinados. O pau de arara, nome dado a essa técnica de tortura, é descrita por Boal da seguinte maneira:
O corpo é pendurado pelos joelhos em haste de ferro ou madeira – daí o nome pau de arara-, mãos algemadas, cruzadas abaixo dos joelhos, para suportar o peso do torturado, que dá um nó.
No começo, a dor é apenas suportável. Depois, não: sofre-se demais. Os dedos incham, bolas roxas do sangue que não circula. Gritos ressoam no silêncio sólido. Gritos de dor, medo, ameaças, promessas de morte (BOAL, 2014, p. 320).
A cena em questão, parte do prólogo de Torquemada, nas palavras de Boal “mostra o meu interrogatório da maneira mais realista possível: o “pau-de-arara” a que me submeteram no terceiro andar do DEOPS de São Paulo, choque elétrico, as perguntas absolutamente idiotas que me fizeram etc.” (BOAL, 1979, p. 62).
Numa colagem que envolve realidade e representação, resistência e repressão, a paisagem dos Teatros Populares Latinoamericanos se descortina. A prisão e o seguido exílio impostos a Boal ao invés de colocarem um fim em sua atuação artística e política, pelo contrário, o fizeram verticalizar ainda mais o trabalho: “Metaforicamente, o Teatro do Oprimido nasceu na prisão.” (BOAL, 2014, p. 330).
O último elemento, o qual aparece na parte inferior desta cartografia autoral, e que chama a atenção enquanto técnica latinoamericana de Teatro Popular é o desenho, feito por Boal e presente em sua obra (1979, p. 103), de um dos possíveis recursos de iluminação a serem utilizados por grupos sem verbas para comprar refletores. E relata que, nas minas de catavi do Século XX, na Bolívia, “o diretor de teatro e linotipista Liber Forti, usou os capacetes com faróis dos mineiros para iluminar os seus espetáculos” (BOAL, 1979, p. 103), em que o interesse do público podia ser medido a partir da intensidade em que a luz incidia nas cenas, que se desenvolviam sobre a carroça que servia de palco àqueles atores. Ainda que não retrate, exatamente, uma encenação de Boal, o esquema desenhado por ele ajuda a compreender o caráter inventivo e persistente do teatro popular que, mesmo com poucos recursos, mesmo em um contexto repressivo, desenvolve estratégias para resistir e existir.
Considerações finais
Há um axioma de Morin (apud SOUZA NETO, 2010 p. 38) que diz “onde a tragédia humana acontece, ocorre também a solidariedade e a criatividade humana”. Nesse sentido, pode-se dizer que, de alguma maneira, mesmo em um período de repressão e perseguição às manifestações artísticas populares, como foram as décadas de 1960 e 1970 na América Latina, o Teatro Popular seguiu existindo e resistindo em sua potência libertária e criativa. Tanto é que, catalisado pelo desejo de transformação da realidade, este tipo de teatro desenvolve diferentes técnicas, como a colagem, a diversidade, a coletividade e a inventividade.
A colagem enquanto técnica para cartografar o teatro popular, foi uma opção para ilustrar neste texto as referências de um tempo. Utilizou-se para isso de documentos ou episódios históricos, como foi o caso de Arena Conta Zumbi e Torquemada, ou de músicas e depoimentos, cujo exemplo foi Arena Canta Bahia. A diversidade apareceu representada pela música popular brasileira em sua variedade de artistas, origens e influências. A coletividade pode ser apreendida nas produções do CPC, bem como nos processos criativos do grupo Arena. Por fim, a inventividade foi apontada na concepção do Teatro Invisível, e no esquema da carroça que, improvisadamente, é apresentado como alternativa à falta de refletores e de um palco, condição comum do Teatro Popular.
Desta maneira, afirma-se mais uma vez a importância de observação, valorização e estudo dessas que são manifestações artísticas populares do Sul global e que, vista a hegemonia dos saberes e práticas dos países do Norte, deixam de ser percebidas em sua real potência. Longe de terminar a discussão, e em virtude do recorte modesto proposto aqui, é que se aponta a importância da continuidade de estudos desse tipo de teatralidade a todos aqueles que, mesmo em momentos de desvalorização da cultura e arte populares, ainda sustentam a crença em sua importância como ferramenta na construção de um mundo mais justo e igualitário.
Referências
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NASCIMENTO, Abdias do. Teatro experimental do negro: trajetória e reflexões. Estudos avançados, v. 18, p. 209-224, 2004.
SOUZA NETO, João Clemente de. Pedagogia social: a formação do educador social e seu campo de atuação. Cadernos de Pesquisa em Educação, 2010.
Notas
[1] Bertold Brecht foi um teatrólogo e dramaturgo alemão. De inspiração marxista, sua obra concentrou-se na crítica artística ao desenvolvimento das relações humanas no sistema capitalista e, dentre outras coisas, é reconhecido pelo desenvolvimento de seu teatro épico.
[2] Augusto Boal foi um teatrólogo, diretor e ensaísta brasileiro de vasta obra e reconhecimento internacional. Perseguido, preso, torturado e exilado durante a ditadura militar de 1964, acreditava no teatro como ferramenta emancipatória das classes oprimidas.
[3] O título da peça faz referência ao nome de Tomás de Torquemada (1420 – 1498) grande inquisidor espanhol que ficou conhecido pelo fanatismo e pelas torturas a serviço da igreja.