The Body-Verb as a primordial (re)creative power in the performatic poetry of the Mbyá-Guarani
RAMALHO, Daniel Rodas. O Corpo-Verbo como potência (re)criadora primordial na poesia performática dos Mbyá-Guarani. In: Aguarrás, vol. 8, n. 38. ISSN 1980-7767. São Paulo: Uva Limão, JUL/DEZ 2021. Disponível em: <http://aguarras.com.br/o-corpo-verbo-mbya-guarani/>. Acesso em: [current_date format=d/m/Y].
RESUMO: Este artigo objetiva analisar a presença de uma potência (re)criadora primordial na poesia performática dos Mbyá-Guarani – compreendendo a relação poética intrínseca entre corpo e verbo, dentro de uma expressividade ritualística que busca reconectar o ser humano com sua essência criadora original. A princípio, discutimos o conceito de linguagem física defendido por Artaud (2008), que entende a linguagem enquanto junção de múltiplos elementos expressivos – corpo, som, dança, canto, palavra, ritmo. A seguir, relacionamos o conceito de Artaud com os apontamentos de Eliade (1972) acerca da ritualização dos mitos cosmogônicos pelos povos tradicionais, que buscam através da linguagem ritualística resgatar a energia criadora primordial. Por fim, observamos a presença de uma potência recriadora primordial na poesia performática dos Mbyá-Guarani, analisando trechos de poemas-cânticos da coletânea Ayvu Rapyta a partir do aporte teórico de Cardogan (1959), Baptista (2011) e Werá (2017), ao mesmo tempo em que buscamos estabelecer uma correlação com a performance poético-ritualística dos cânticos; em diálogo com a linguagem física de Artaud (2008); na busca por uma poética capaz de evocar as energias criadoras primordiais, resgatando a potência curadora, transformadora e criativa do ser humano.
Palavras-chave: Poesia; Literatura; Teatro; Ayvu Rapyta; Artaud.
ABSTRACT: This article aims to analyze the presence of a primordial (re)creative power in the performance poetry of the Mbyá-Guarani – understanding the intrinsic poetic relationship between body and verb, within a ritualistic expressiveness that seeks to reconnect human beings with their original creative essence. At first, we discussed the concept of physical language defended by Artaud (2008), which understands language as a combination of multiple expressive elements – body, sound, dance, singing, word and rhythm. After that, we related Artaud’s concept with Eliade’s (1972) notes about the ritualization of cosmogonic myths by traditional peoples, who seek, through ritualistic language, to rescue the primordial creative energy. Finally, we observed the presence of a primordial recreating power in the performance poetry of the Mbyá-Guarani, analyzing parts of poem-songs from the Ayvu Rapyta’s collection based on the theoretical contribution of Cardogan (1959), Baptista (2011) and Werá (2017). In the meanwhile, we seek to establish a co-relation with the poetic-ritualistic performance of the songs in dialogue with the physical language of Artaud (2008); with it, we search for a poetics capable of evoking the primordial creative energies, rescuing the healing, transforming and creative power of the human being.
Keywords: Poetry; Literature; Theater; Ayvu Rapyta; Artaud.
1 – Introdução
O presente artigo tem como objetivo analisar a presença de uma potência recriadora primordial na poesia performática dos Mbyá-Guarani – a partir do pressuposto da fusão das linguagens verbal, musical e corporal numa única expressão estética ritualística que retoma e recria os mitos cosmogônicos através da poesia.
Sendo assim, nossa pesquisa terá como norte as seguintes indagações: de que forma a potência criadora primordial – entendida aqui como a retomada poética dos antigos mitos cosmogônicos – é evocada pela poesia performática do Mbyá-Guarani? E como a referida poesia performática pode ser entendida como uma linguagem física – conforme Artaud (2008) – que funde corpo, dança e palavra numa única expressão atravessada pela teatralidade ritual?
Visando responder às referidas questões, traçaremos um caminho metodológico de discussão teórica e posterior análise do corpus, evidenciando as relações entre corpo e verbo a partir da poesia performática dos Mbyá-Guarani – tal como documentado no Ayvu Rapyta – e seus possíveis diálogos com o teatro físico artaudiano, na busca por um caminho de resgate das forças criadoras, transformadoras e essenciais do ser humano.
2 – O Corpo-Verbo e a linguagem poética ritualística
Não existe distinção entre linguagem e vida. Entre espírito e matéria. Entre corpo e espírito. A Arte, quando imbuída de força ritualística, transcende os limites da razão e dos “sentidos” comuns, (re)criando novas possibilidades. Assim nos diz Antonin Artaud (2008) em sua coletânea de textos Linguagem e Vida. Para o diretor, poeta e homem de teatro francês, a poesia do seu tempo – início do século XX – estava literalmente morta; presa no racionalismo, na repetição, na inútil tentativa de representar a “realidade”; ao mesmo tempo em que abria mão da verdadeira força ritualística e transformadora da Vida; força essa que só poderia ser encontrada através de uma estética que “revolvesse nervos e coração” (ARTAUD, 2006).
Na busca por tal estética – que o autor chamaria de Teatro da Crueldade – Artaud (2006) propõe uma nova ideia de linguagem que ultrapassa os sentidos “racionais” da palavra; que transpõe os limites dos usos comuns e a compreende não em função de sua semântica, mas de sua força enquanto elemento de impacto dentro da teatralidade. Nas palavras do autor:
A escravização ao autor, a submissão ao texto, que barco fúnebre! Mas cada texto tem possibilidades infinitas. O espírito e não a letra do texto! Mas um texto exige mais do que análise e penetração. Há que restabelecer um tipo de intercomunicação magnética entre o espírito do autor e o espírito do encenador. O encenador deve prescindir até de sua própria lógica e de sua própria compreensão. (ARTAUD, 2008, p. 25).
Ou seja, ao propor uma renovação da arte teatral a partir dos pressupostos de uma estética de impacto, de ruptura com o logicismo cotidiano, Artaud (2008) propõe que os encenadores – atores e diretores – se desprendam de toda uma tradição textocêntrica presente no teatro ocidental, que “escraviza” o teatro, limitando-o a uma encenação artificial e “realista”, incapaz de estabelecer uma conexão real com o público. Sendo assim, para que se possa romper com a centralidade do texto escrito – da mera encenação dos roteiros e “obras-primas” – é preciso que se encontre uma nova forma de linguagem que transcenda a “letra” do texto e resgate o “espírito” do mesmo, na busca por uma fisicalidade da linguagem.
É importante destacar, portanto, que a defesa de Artaud (2008) não é de uma abolição total do texto verbal dentro da prática teatral, mas sim de ressignificação dos usos do mesmo. Para Artaud, a importância da palavra não está no seu significado racional, na sua “lógica”, mas sim na própria sonoridade; na força ritualística do ritmo e do som; que uma vez combinada ao gesto, à cor, ao figurino, ao cenário, à música e às múltiplas expressões corporais, possibilita o surgimento de uma linguagem multifacetada e imersiva, verdadeiramente física; convertendo o corpo e as ações do ator num corpo-verbo, numa palavra-ação, num gesto-pensamento; onde todas as possibilidades de impacto são alavancadas de modo a tirar o espectador de sua inércia.
Sendo assim, a linguagem física proposta por Artaud (2008) cria um corpo-verbal onde múltiplas linguagens se fundem numa experiência poética transformadora, de forte natureza ritualística. No teatro proposto por Artaud, portanto, a palavra é som; som que se move através do ritmo; que se potencializa através do gesto; se expressa por meio da cor; que se expande através da dança, da música e do movimento; de modo que se cria uma experimento estético capaz de atacar os espectadores “por todos os sentidos” (ARTAUD, 2006).
No seu Teatro da Crueldade – o conjunto de proposições estéticas derivadas das suas concepções – Artaud (2006) buscou influências distintas das práticas performáticas e teatrais predominantes no ocidente; procurando no teatro e nas práticas ritualísticas indígenas uma correspondência profunda com aquilo que considerava ser a verdadeira face do teatro. A busca por linguagem ritualística levou o autor a uma jornada de imersão espiritual com os indígenas tarahumaras – nativos das montanhas do México – onde participou de rituais tradicionais envolvendo o enteógeno peyotl, além de outras experiências iniciáticas (ARTAUD, 2020). No decorrer de tais experiências, Artaud encontrou uma relação entre os ritos performáticos daquela comunidade nativa – que incluía expressões verbais, corporais e sonoras – e o teatro ritualístico que tanto buscava. Sendo assim, para o autor francês, o teatro – e consequentemente a Arte – deveria resgatar sua força enquanto rito, enquanto jornada iniciática e (re)criadora; o que só seria possível por meio de uma linguagem verbo-corporal potente e ritualística; onde som, gesto, palavra, cor, dança e figurino se entrelaçam num ritual encantatório e transformador.
A partir do relato de Artaud (2020) de suas experiências com os tarahumaras; e da defesa de um teatro ritualístico que perpassa toda sua obra; fica evidente a relação entre o Teatro da Crueldade artaudiano e as poéticas dos povos indígenas das mais diversas regiões do globo; uma vez que as manifestações poéticas desses povos, sobretudo de base oral, transpassam as limitações da “letra” e resgatam o poder da palavra enquanto cosmogonia; enquanto (re)criação poético-encantatória do cosmos; onde corpo e verbo se unem numa expressão ritualística geradora e transformadora, resgatando o poder dos antigos mitos.
3 – O mito cosmogônico e a (re)criação poética do cosmos
Conforme nos diz Mircea Eliade em sua obra Mito e Realidade (1972), os antigos mitos – preservados oralmente pelos povos tradicionais – muito mais do que elencar “narrativas fantasiosas”, trazem em si toda uma energia, toda verdade profunda e original, preservada pela ancestralidade. Ao analisar a natureza de um tipo específico de mito – o mito cosmogônico, que narrava criação e o surgimento do mundo a partir dos deuses – o autor destaca o modo com os povos tradicionais compreendem tais narrativas, entendendo-as como verdadeiras recriações poéticas de uma realidade primordial; recriações estas que ocorrem exclusivamente dentro de um contexto sagrado, ritualístico, por vezes com objetivo mágico específico.
Sendo assim, conforme destaca Eliade (1972), sempre que o poeta-sacerdote de uma tribo entoa um cântico sagrado sobre a origem do mundo, o que se faz ali não é uma simples “encenação” de fatos distantes do passado, mas sim uma recriação poética do próprio cosmos, uma vez que a energia ritualística despertada pelos cânticos evoca forças sagradas primordiais, manifestadas ali com o objetivo de curar doenças, saudar os ancestrais, afastar o mal e recarregar as energias para os dias futuros. Sendo assim:
Para o homem das sociedades arcaicas, ao contrário, o que aconteceu ab origine pode ser repetido através do poder dos ritos. Para ele, portanto, o essencial é conhecer os mitos. Essencial não somente porque os mitos lhe oferecem uma explicação do Mundo e de seu próprio modo de existir no Mundo, mas, sobretudo porque, ao rememorar os mitos e reatualizá-los, ele é capaz de repetir o que os Deuses, os Heróis ou os Ancestrais fizeram ab origine. Conhecer os mitos é aprender o segredo da origem das coisas. Em outros termos, aprende-se não somente como as coisas vieram à existência, mas também onde encontrá-las e como fazer com que reapareçam quando desaparecem. (ELIADE, 1972, p. 14) (Grifos do autor).
O conhecimento dos mitos e de sua expressão poética representa, portanto, um verdadeiro “poder” para os povos tradicionais – em especial as populações indígenas – de modo que recriá-los durante os rituais significa trazer à tona a força geradora que por ventura possa ter desaparecido no decorrer das eras. Dentre os muitos exemplos práticos de tal concepção, Eliade (1972) aponta que em várias nações indígenas da América do Norte e da Polinésia existe a tradição de se cantar ritualisticamente os mitos de origem – ou mitos cosmogônicos – durante momentos especiais para a comunidade, como o nascimento de novos membros, a coroação dos líderes, a virada do ano e o ciclo das estações, assim como também nos ritos de passagem e nas cerimônias de cura. Durante a realização de tais ritos, são recontados poeticamente os mitos da criação do mundo pelos deuses, do surgimento da humanidade, das primeiras organizações sociais, da agricultura, da pesca e da caça, assim como também a origem das doenças e intempéries naturais. Nos rituais de cura, por exemplo, Eliade (1972) aponta que os curadores cantam a origem mítica da própria doença, de modo a expulsá-la do corpo do indivíduo; ou ainda optam por cantar sobre o mundo primordial, o mundo dos tempos antigos, onde não havia qualquer tipo de enfermidade. Independente da natureza do mito cantado durante o rito, o que se destaca durante tais celebrações é sempre a busca por recriar, através da linguagem poética, a força geradora e sagrada dos primórdios do mundo.
Um exemplo de prática poético-ritualística mais próxima de nós – e elencada através de registros escritos e testemunhos etnográficos – é a poesia performática do povo Mbyá-Guarani, subgrupo da nação indígena Guarani que habita a região centro-sul da América do Sul, na fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina. Conforme os registros de León Cardogan (1959) e Kaká Werá (2017), os Mybiá-Guarani são conhecidos por seus rituais de natureza xamãnica; nos quais os sacerdotes xamãs – chamados karaí – realizam uma série de cânticos ritualísticos que retomam os mitos cosmogônicos com os mais diversos fins, com destaque especial para a finalidade de cura.
A natureza desses cânticos ritualísticos, conforme Werá (2017), engloba muito mais do que uma recitação dos versos orais; de modo que, uma vez reunidos no opy – a casa de rezas ou espaço sagrado – os indivíduos, sob orientação do karaí, cantam, dançam, gesticulam, recitam e fumam o cachimbo sagrado, ao mesmo tempo em que recontam, através de poemas fortemente marcados pelo ritmo e sonoridade, os mitos da origem do mundo e da humanidade. Tal mistura de expressões ritualísticas – que são, igualmente, poéticas – se dá pela visão holística desse povo, que não distingue palavra, corpo e som; entendendo que os cânticos só trazem de fato a “força” geradora original quando acompanhados da dança, do canto e de uma gestualidade ritualística própria.
Sendo assim, a natureza performática que encontramos nos cânticos sagrados Mbyá-Guarani não só remete à força recriadora dos mitos – tal como apontado por Eliade (1972) – como em muito se aproxima da linguagem física defendida por Artaud (2008), visto que transpõe a mera repetição da palavra e combina uma série de expressões poéticas que fundem numa única linguagem ritualística, potente e transformadora; capaz de recriar as energias primordiais do mito cosmogônico, visando à cura e a regeneração da humanidade.
4 – A potência recriadora do mito cosmogônico na poesia performática dos Mbyá-Guarani
A poesia performática dos Mbyá-Guarani, preservada por séculos através da oralidade, tornou-se conhecida do público a partir da reunião de cânticos Ayvu Rapyta publicada pelo estudioso León Cardogan em 1959 – onde o autor reúne e traduz os cantos sagrados originais do dialeto mbyá para o espanhol, trazendo uma série de notas explicativas que nos permitem compreender a natureza geradora e cosmogônica proporcionada pela recitação ritualística dos poemas.
A partir dos apontamos de Cardogan (1959), Baptista (2011) e Werá (2017), percebe-se que a poesia performática ritual dos Mbyá-Guarani só pode ser compreendida dentro de seu contexto ritualístico; uma vez que se constituem em verdadeiras reconstruções encantatórias das forças cosmogônicas que deram origem ao universo. Nos três cânticos-poemas traduzidos por Baptista (2011) direto do mbyá para o português, é descrita uma série de eventos que remonta à criação do mundo a partir da compreensão cosmogônica dos Mbyá-Guarani. Para este povo, a partir do que se depreende dos mitos recontados nos cânticos-poemas, o mundo foi criado a partir do caos original pela divindade suprema – Ñande Ru Papa Tenondé – que se “desdobrou a si mesmo como flor”, enquanto se ouvia o som da Coruja, num desabrochar através do qual o deus é iluminado pelo “sol de seu próprio coração”, acompanhado pelo voo do Colibri. Uma vez “desabrochado”, Ñande Ru desdobra de si as forças primordiais do fogo e da neblina – que dão origem à vida – fazendo “a fonte da fala (ayvu rapyta) fluir sobre seu corpo”, dando origem aos primeiros seres humanos e deuses. Percebe-se, portanto, que o som – entendido aqui como uma palavra ou verbo corporificado – tem função primordial na origem da humanidade, o que dialoga com a concepção de força geradora ritualística através de uma linguagem física (conforme Artaud) e de uma retomada da energia primordial através dos cânticos sagrados (conforme Eliade).
Na presente investigação, optamos pela recente tradução de Baptista (2011) para o português para empreender uma análise dos elementos simbólicos dos cânticos – e mais especificamente do segundo cântico que compõe o Ayvu Rapyta, intitulado “A Fonte da Fala” – de modo a evidenciar a presença do mito cosmogônico e a força do corpo-verbo na poesia dos Mbyá-Guarani.
Conforme a tradução de Baptista (2011), o segundo poema-cântico do Ayvu Rapyta diz o seguinte:
A fonte da fala
Ñamandu, nosso Pai verdadeiro, o primeiro,
de uma pequena parte de seu ser-de-céu,
do saber contido em seu ser-de-céu,
e sob o sol de seu lume criador,
alastrou o fulgor do fogo e a neblina que dá vida.
Incorporando-se,
com o saber contido em seu ser-de-céu,
e sob o sol de seu lume criador,
iluminou-se a fonte da fala.
Com o saber contido em seu ser-de-céu,
e sob o sol de seu lume criador,
nosso Pai iluminou-se a fonte da fala
e fez com que fluísse por seu ser, divinizando-a.
Antes de a Terra existir,
no caos obscuro do começo,
tudo oculto em sombras,
Ñamandu, Pai verdadeiro, o primeiro,
florou-se a fonte da fala e fez com que fluísse por seu
[ser, divinizando-a. […]
(BAPTISTA, 2011, p. 31).
Comecemos pelo título. “A fonte da fala” – no original, ayvu rapyta – refere-se à origem da linguagem, à força que nomeia e dá concretude ao caos primordial. Conforme destaca Baptista (2011), o termo rapyta significa “base, alicerce, origem”. Trata-se do momento em que a linguagem toma forma a partir da emanação do ser supremo, Ñamandu, que a partir “de uma pequena parte de seu ser-de-céu” cria a palavra-alma que dá vida à humanidade. É interessante destacar que, a partir dos apontamentos da autora, o termo ayvu é traduzido como linguagem humana, idioma, fala; entretanto, a noção de linguagem para os povos guaranis tem em si uma conotação fortemente holística, uma vez que a “palavra” não se refere apenas aos fonemas articulados, mas sim a totalidade do som corporificado; o som-palavra que é ao mesmo tempo um verbo-corpo-palavra-alma; ou seja, a potência energética primordial que preenche e dá vida ao ser humano. Além disso, Baptista (2011) destaca que as descobertas de Cardogan (1959) apontaram para a duplicidade de significados dos termos ayvu (linguagem humana), ne’êy (palavra) e e (dizer), que significam, respectivamente, “expressar ideias” e “porção divina da alma”. A partir desta duplicidade, percebe-se que os Mbyá relacionam o ato de “expressar ideias” – ou seja, de utilizar-se da linguagem verbo-sonora-corporal – com o ato de ativar a própria “porção divina da alma”; de modo que, ao expressar os poemas-cânticos no decorrer dos rituais, mesclando sons, gestos, danças e palavras rítmicas, os sacerdotes-xamãs – ou karaí – invocam a potência divina primordial presente em todos os seres humanos, canalizando essa energia para o ritual; o que dialoga com as descrições de Eliade (1972) acerca do caráter gerador e ritualístico dos mitos cosmogônicos nas sociedades tradicionais.
No decorrer da primeira estrofe, o poema-cântico descreve o Primeiro Ato, a ação criadora através do qual o ser supremo se desdobra a partir de sua essência original – o “ser-de-céu” – trazendo para o mundo o seu “saber contido”. Esse saber traz a força de uma consciência que se expande e cria realidades – o “lume criador” – materializado em duas energias primordiais: o fogo e a neblina. Chevalier (2018) aponta que a imagem do fogo representa, dentre outras significações, a força elementar do espírito, o “calor” da alma que aquece e garante a surgimento da vida – tal como o sol que traz o verão e garante a fertilidade das colheitas; além disso, representa ainda a potência regeneradora, aquela que “destrói” para reconstruir, renova o que se havia perdido. Já a neblina, aponta Chevalier (2018), traz a imagem do indefinido, do transitório; do “caos” primordial a partir do qual será gerado a vida – como afirma o próprio poema: “a neblina que dá vida”; neblina essa que, conforme aponta Baptista (2011), tem sua correspondência na fumaça do cachimbo fumado durante os rituais. As imagens do fogo e da neblina, portanto, evocam as forças primordiais que criam, destroem e regeneram o mundo; de modo que, ao entoar ritualisticamente o cântico-poema, o karaí busca resgatar tais forças para “destruir” e renovar o cosmos e os indivíduos, proporcionando a cura e a regeneração.
No início da segunda estrofe, o poema-cântico diz: “Incorporando-se,/ com o saber contido em seu ser-de-céu, / e sob o sol de seu lume criador,/ iluminou-se a fonte da fala.”. O verbo incorporar – originário do latim in corpus, “dar corpo”, “dar forma” – traz tanto a ideia de se modelar algo; no caso, a energia primordial; quanto a de corporificar algo, de trazer para o corpo essa energia. A partir desse verso, entende-se que o ato criador do ser supremo passa diretamente pela ação de trazer a energia para o corpo, de modo a modelá-la com a consciência – o “saber contido em seu ser-de-céu” – e a criatividade – “sol de seu lume criador” – para gerar a “fonte da fala”, a origem da linguagem. Daí depreende-se que a ação criadora de Ñamandu passa por uma junção entre o corpo, a mente, o som e o espírito, materializados na linguagem física da criação, na energia que dá forma ao ser humano. Acerca dessa energia, Werá (2017) nos traz a informação de que o termo tupi – utilizado para designar todo o grupo indígena dos tupis-guaranis, do qual os Mbyá-Guarani fazem parte – significa “som-assentado” ou “som-de-pé”. Esse “som” se assemelha ao “ser” – ayvu – de modo que o ser humano é por si só, um “som-de-pé”, um corpo-verbo, uma palavra corporificada. Sendo assim, a recitação ritualística dos versos busca reconectar a energia original ao ser humano, resgatando o “som” original que se corporifica através da dança e da gestualidade ritual, repetindo o ato criador do ser supremo. No restante da estrofe, reforça-se a descrição do rito cosmogônico, através do qual o ser supremo “flui” e “diviniza” a fonte da fala, demonstrando o caráter sagrado da linguagem física personificada no ritual.
A seguir, o poema-cântico prossegue:
A fonte da futura palavra tendo aflorado,
Com o saber contido em seu ser-de-céu,
E sob o sol de seu lume criador,
de si foi aflorando a fonte do amor.
Tendo aflorado a fonte da fala,
Tendo aflorado um pouco de amor,
Com o saber contido em seu ser-de-céu,
E sob o sol de seu lume criador,
o princípio de um som sagrado ele, a sós, criou. […]
(BAPTISTA, 2011, p. 33)
Nesta parte do poema-cântico, são reforçados os elementos criadores referenciados anteriormente. Uma vez “tendo aflorado” a “fonte da futura palavra”, o ser supremo continua sua criação “aflorando a fonte do amor”. Baptista (2011) aponta que o termo mborayu – significa, literalmente, “amor” – tem uma conotação controversa, uma vez que existem discussões acerca de que natureza seria o “amor” relatado no poema-cântico. Cadogan (1959), por exemplo, interpreta o termo como sendo “amor ao próximo”, ou seja, o amor do ser supremo por suas criaturas. Outros autores, porém, a exemplo de Pierre Castres, afirmam que tal compreensão é resultado da interferência dos jesuítas, que teriam se utilizado do conceito tradicional de mborayu para inserir concepções cristãs. Sendo assim, o significado mais exato para o termo seria o de “solidariedade tribal”, de reunião e de união da comunidade; o que não anula o significado de “amor ao próximo”, mas o insere em uma lógica mais próxima do mundo de vida dos guaranis. Dessa forma, ao aflorar, no ato da criação, a “fonte do amor”, o ser supremo confere ao mundo a força da energia comunitária, da união dos indivíduos, da coletividade que se une em prol de um bem comum. Tal energia, recuperada ritualisticamente, relaciona-se com a “fonte da fala”, com a linguagem, possibilitando a (re)criação do mundo através do ritual coletivo.
Tendo aflorado, a sós, a fonte da futura fala,
e desdobrado, a sós, um pouco de amor;
tendo criado, a sós, um breve som sagrado,
ele refletiu longamente
sobre com quem compartilhar a fonte da fala;
sobre com quem compartilhar o amor,
com quem partilhar as fieiras de palavras do som sagrado. […]
Depois de refletir,
com o saber contido em seu ser-de-céu,
e sob o sol de seu lume criador,
criou o Ñamandu de Grande Coração. […]
Para que fosse o pai de seus muitos filhos vindouros,
O verdadeiro pai das almas dos numerosos filhos vindouros,
ele criou o Ñarnandu valoroso. […]
Depois disso,
o verdadeiro Pai Ñamandu.
para refletir seu coração,
fez saber-se divina
a futura Mãe verdadeira dos Ñamandu;
o verdadeiro Pai Karaí,
para refletir seu coração,
fez saber-se divina
a futura Mãe verdadeira dos Karaí. […]
Por terem recebido o lume
divino do próprio Pai primeiro;
por terem recebido a fonte da fala;
por terem recebido a fonte do amor
e as fieiras de palavras do som sagrado;
por estarem unidos à origem do saber criador,
também os chamamos de
inspirados pais verdadeiros das palavras-almas;
inspiradas mães verdadeiras das palavras-almas.
(BAPTISTA, 2011, p. 35-41).
Seguindo o ato criador, o poema-cântico descreve o surgimento da humanidade, criada a partir da necessidade do ser supremo de “compartilhar a fonte da fala” e a “fonte do amor”. Desdobrando sua potência divina, o ser supremo se corporifica gerando novos seres: Ñamandu de Grande Coração, a Mãe verdadeira e o Pai Karaí. Tais seres, originados do corpo-verbo divino, são os ancestrais da humanidade, que recebem o “lume divino do Pai primeiro/ […] a fonte da fala/ […] a fonte do amor/ e as fieiras de palavras do som sagrado”, de modo que estão diretamente “unidos à origem do saber criador”; a sabedoria primordial, evocada através dos cânticos rituais e das celebrações comunitárias. As “palavras-almas” – no original, ñe’êy – designam, segundo Baptista (2011), o espírito, a energia sagrada enviada pelos deuses aos recém-nascidos; constituindo, portanto, o som corporificado que dá forma e vida aos seres humanos. O mesmo termo ainda é aplicado para designar uma série de sons próprios da natureza, como o canto dos pássaros, o barulho dos insetos, etc., apontando para uma correspondência direta entre a alma humana e a natureza, entendendo-os como elementos igualmente originários da energia primordial do ser supremo.
Diante do que foi exposto, torna-se perceptível a correlação entre a poesia performática dos Mbyá-Guarani – entendida dentro de sua mescla de linguagens sonoras, corporais e verbais – e a concepção de linguagem física proposta por Artaud (2008); uma vez que compreende a linguagem não como um conjunto de textos escritos ou de significações puramente racionais, mas como uma força primordial, uma energia recriadora e regeneradora que, corporificada pela dança, pelo canto, pelos gestos e pelo ritmo empregado nos cânticos, se faz capaz de, conforme nos diz Eliade (1972) despertar a potência regeneradora, criadora e profunda contida no ser humano e no cosmos, proporcionando o renascimento, a transformação, a cura e a regeneração.
5 – Considerações Finais
Neste estudo, buscamos analisar a presença de uma potência recriadora primordial na poesia performática do povo Mbyá-Guarani, demonstrando a relação entre a recriação poético-ritualística dos mitos cosmogônicos nos cânticos do referido povo e a linguagem física proposta por Artaud (2008), dentro da perspectiva de um corpo-verbo.
Através da análise de alguns poemas-cânticos do Ayvu Rapyta e suas simbologias cosmogônicas, demonstramos a relação existente entre o conceito de Artaud (2008) e a potencialidade ritualística recriada pelo Mbyá-Guarani através dos ritos; que congregam canto, música, gestos, palavras e indumentárias; constituindo uma linguagem verdadeiramente física, onde a força do mito recriado potencializa e é potencializada pela expressividade performático-ritualística.
Sendo assim, é possível afirmar que a poesia ritualística dos Mbyá-Guarani constitui-se como um exemplo legítimo de uma poética potente e primordial; capaz de, ao resgatar a energia criadora essencial do ser humano e da Natureza, promover uma reconexão da humanidade com sua essência criativa, expressiva, curadora e divina.
Referências
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
______. Linguagem e vida. São Paulo: Perspectiva, 2008.
______. Os tarahumaras. Belo Horizonte: Moinhos, 2020.
BAPTISTA, Josely Vianna. Roça barroca. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
CARDOGAN, León. Ayvu Rapyta: textos míticos de los Mbyá-Guaraní del Guairá. São Paulo: FFCL-USP, 1959.
CHEVALIER, Jean. Dicionário de Símbolos. 31 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2018.
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972.
WERÁ, Kaká. O trovão e o vento: um caminho de evolução pelo xamanismo tupi-guarani. São Paulo: Polar, 2017.