Do Barroco ao Modernismo Brasileiro: Busca de uma identidade nacional no Século XX

artigos Edição 38

From Baroque to Brazilian Modernism: Search for a national identity in the 20th century

BONOMASTRO, Herbert. Do Barroco ao Modernismo Brasileiro: Busca de uma identidade nacional no Século XX. In: Aguarrás, vol. 8, n. 38. ISSN 1980-7767. São Paulo: Uva Limão, JUL/DEZ 2021. Disponível em: <http://aguarras.com.br/barroco-modernismobr/>. Acesso em: [current_date format=d/m/Y].

Resumo

Analisar a produção artística do barroco na região de Minas Gerais no século XVIII e compreender a importância da cultura e produção negra, levando em conta elementos próprios aplicados a arte, colocando-a em um patamar diferente do cânone tradicional que define o barroco. Dentro dessa chave, torna-se importante analisar a participação do movimento modernista e suas analises a respeito do barroco na busca de uma arte nacional. Para a realização deste artigo foi utilizada uma pesquisa descritiva, no intuito de compreender como a Arte Barroca na região de Minas Gerais (século XVIII) recebeu diversas influências dos povos negros, mestiços, índios e europeus e como o modernismo redescobre o barroco no início do século XX. Para tal, utilizaremos o referencial teórico para compreender os conceitos básicos de Barroco, século XVII e Arte Moderna, século XIX e XX, incialmente no seu surgimento na Europa e posteriormente sua aplicação e desdobramentos no Brasil.

Palavras chaves: Barroco Negro. Ouro Preto. Mestre Ataíde. Aleijadinho. Modernismo Brasileiro.

 

Abstract

Analyze the artistic production of the baroque in the region of Minas Gerais in the eighteenth century and understand the importance of black culture and production, considering its own elements applied to art, placing it on a different level than the traditional canon that defines the baroque. In this subject, it is important to analyze the participation of the modernist movement and its analysis of the baroque in the search for a national art. For this article we used a descriptive research, in order to understand how the Baroque Art in the Minas Gerais region (18th century) received several influences from black, mestizo, Indian and European people and how the modernism rediscovers the Baroque in the beginning of the 20th century. To accomplish our goal, we will use the theoretical referential to understand the basic concepts of Baroque, 17th century, and Modern Art, 19th and 20th century, initially in its emergence in Europe and later its application and unfolding in Brazil.

Keywords: Black Baroque, Ouro Preto, Master Ataíde, Aleijadinho, Brazilian Modernism

 

Introdução

No final do século XVI, Martinho Lutero (Alemanha 1483 – 1546) inicia um processo de questionamentos ligados aos dogmas da Igreja Católica, dando início a um grande movimento religioso que será intitulado de Reforma Protestante. Dentro desta chave da Reforma, Martinho Lutero condenará a idolatria de imagens santas e pagãs, causando um grande impacto na produção cultural do período, denominada Renascimento.

Tal arte renascentista tinha como base um retorno aos clássicos, Grécia e Roma, tendo como um dos elementos de inspiração, em sua produção artística, questões religiosas e pagãs, como por exemplo “O Nascimento de Vênus” (Botticelli – 1483) (figura 1) e a “Transfiguração” (Rafael – 1517) (figura 2); desta maneira, a Igreja Católica busca uma outra forma de se expressar a partir da arte, isso porque a principal forma de difusão cultural do período era esta, e a Igreja Católica a utilizará com o intuito de ensinar seus preceitos e dogmas.

Figura 1 – “O Nascimento de Vênus” 1486, Têmpera. Sandro Botticelli. Galleria Degli Uffizi – Itália.

 

Figura 2 – “Transfiguração” 1520, óleo sobre tela. Rafael Sanzio. Museu do Vaticano – Vaticano.

A saída encontrada pela Igreja Católica a partir do Concílio de Trento (1546) foi uma profunda reforma em sua maneira de pensar e de se expressar; entre vários pontos, buscou-se a elaboração de um novo estilo artístico que reafirmasse os dogmas da Igreja, dando origem ao Barroco, costume que iria modificar diversos cânones ligados à produção do Renascimento. Outro ponto importante do Concílio de Trento foi a criação da Companhia de Jesus, e os jesuítas foram os responsáveis por difundir a fé cristã católica, tendo criado raízes no continente americano no período colonial, estádio em que tal acontecimento teve grande importância na compreensão do Barroco no Brasil no século XVIII.

O Barroco denominado brasileiro será “redescoberto” por nossos modernistas no início do século XX, que estavam buscando compreender sua produção e seus elementos, além daqueles desenvolvidos na Europa, designados a relacioná-los a um novo Brasil, moderno, miscigenado e nacional, com todas as complicações que estes adjetivos podem trazer ao relacionarmos arte e nação.

Definições

Importante salientar que este trabalho não está ligado a um debate das técnicas de produção do barroco ou do modernismo – europeu ou brasileiro –,  mas sim às formas e aos motivos para a produção artística, levando em grande consideração seus agentes de produção e seus contextos históricos, isso porque, segundo Adorno (2021)[1], a melhor representação de um estilo artístico não é somente sua produção perfeita ligada à técnica, mas sim como essa técnica é usada para demonstrar a autonomia da produção, onde os elementos presentes em uma obra de arte não são meramente decorativos, mas, ao contrário, carregam consigo a visão do artista referente ao estilo artístico representado, por exemplo, pelo barroco do século XVI na Europa, e pelo barroco do século XVIII no Brasil; sendo assim, o estilo e sua forma de produção podem tanto reafirmar ou contrariar por sua teoria básica de formação.

Um bom exemplo para esse debate proposto por Adorno é a própria crítica de arte, isso porque, ao passar do tempo, os artistas vão trazendo novas visões, novas roupagens para os estilos artísticos e acabam sendo criticados, não por sua produção, mas sim por sua distância em relação à arte dita como correta quando relacionada à técnica. Desta forma, este trabalho irá trazer, em análise, a técnica e a produção, o artista e seu ambiente.

Ao falarmos de barroco, devemos nos ater às formas como esta arte foi analisada pela sociedade europeia do século XVI, que coloca o barroco como uma algo ligado ao bizarro, ao exagero, como a própria definição da palavra barroco “Pérola imperfeita”[2]. Porém, com o passar dos séculos, o barroco – ou seiscentista –, como também pode ser chamado o movimento, foi denotado de novas visões em compreensões, chegando ao século XIX com aceitação de sua produção a partir da arte alemã.

Para falarmos do barroco e de seus desdobramentos culturais precisamos compreender o que foi o século XVI, período de sua elaboração, e como os movimentos daquele século acabaram por alterar em grande medida a política, a religião e a sociedade europeia. Quando falamos do século XVI, devemos compreender que foi um período de grandes rupturas nas tradições, estando estas ligadas às doutrinas religiosas elaboradas durante toda a Idade Média, onde a moral cristã se colocava como a formadora de regras e de leis, tendo sua verdade como única, dogmática, que não poderia ser questionada quanto mais  contrariada;  porém alguns fatos históricos acabam por exemplificar as rupturas, sendo eles o humanismo, a revolução científica, a reforma protestante e o descobrimento do Novo Mundo, assim, o conceito de verdade volta à tona em um espaço de disputa.

Ao citarmos o humanismo, devemos fazer um retorno ao século XIV, isso porque, a partir deste período, inicia-se a retomada do interesse pelos estudos clássicos, Grécia e Roma, em que o homem/mulher passa a ser visto como um ser individual que possui desejos, conhecimentos, práticas e costumes, deixando de ser parte de um grande grupo social; vale lembrar que durante a Idade Média tínhamos uma sociedade estamental, formada por clero, nobre e camponês. A partir deste ponto, o homem/mulher começa a ter uma maior busca por conhecimento, tendo uma revisão de conteúdos ligados à filosofia, à literatura, à matemática, à história, à arte e à arquitetura, que acaba por levar a novos questionamentos e ideias.

Este humanismo acaba por criar uma grande gama de questionamentos, porque o pensamento científico tem por base a dúvida, possibilitando na passagem do século XV/XVI, o desenvolvimento da revolução científica, com nomes como René Descartes, Nicolau Copérnico, Galileu Galilei, que trazem questionamentos e contribuições para o pensamento crítico do período, que acabam por balançar os alicerces dogmáticos da Igreja Católica que irá receber um novo golpe: a reforma protestante iniciada por Matinho Lutero.

A Reforma Protestante inicia-se dentro da própria Igreja Católica; o próprio nome do movimento já nos dá essa ideia, porque Lutero, ao observar os modos como a Igreja Católica lidava com a fé, vê distorções entre o que era dito e o que era feito ou, em uma linguagem mais religiosa, uma diferença entre as sagradas escrituras e as pregações. A partir daí, Lutero desenvolve uma reforma do funcionamento da Igreja Católica, colocando, nas portas da igreja do Castelo de Wittenberg, as chamadas 95 teses, em que se podem destacar: salvação pela fé, livre interpretação da bíblia e sacerdócio universal. Esta ação gerou dois movimentos, sendo o primeiro a reação da Igreja Católica aos pensamentos de Lutero, como por exemplo, o Concílio de Trento; e o segundo, a difusão destas ideias, em que se pode destacar o surgimento da Igreja Anglicana na Inglaterra durante o reinado de Henrique VIII, que desejava se separar de sua esposa Catarina de Aragão e das amarras políticas da Igreja Católica, como também João Calvino na Suíça, cujo conceito de predestinação atraiu boa parte da burguesia, isso porque até o presente momento o lucro era visto, pela Igreja Católica,  como pecado, usura; porém o calvinismo prega que o desenvolvimento econômico se dá por uma escolha divida.

E para fechar essa grande e importante contextualização, temos o contato dos europeus com o continente americano, que, por alguns séculos, passa a ser o ponto de fuga encontrado pela Igreja Católica em relação à Reforma Protestante, porque o continente americano será o local de uma nova onda de difusão da fé católica, tendo como seus agentes os jesuítas que, ao mesmo tempo que ensinam as doutrinas católicas às populações indígenas, acabam por lhes destruir a cultura; junto a todo esse aparato social, político e econômico, surge a arte barroca, um dos focos mais aprofundados de nosso estudo.

Para falarmos de barroco, precisamos compreender suas características próprias, como a utilização do naturalismo com o intuito de demonstrar sentimentos como dor, medo, espanto; contraste de cores ou jogo de luzes, utilizando do contraste em claro e escuro para enfatizar ações presentes na obra e ideia de movimento, para representar as ações da obra e até mesmo uma sexualidade. Não podemos perder de vista as ações da Igreja Católica presentes no Concílio de Trento, que, a partir das obras de arte buscam reafirmar os dogmas da própria instituição, buscando trazer uma aproximação maior entre o humano e o divino, o sagrado e o profano, com o intuito da população “se ver” representada nas imagens.

A arte barroca não ficou restrita somente à religião, como também apresentou obras ligadas ao mundo grego e romano, com elementos ligados à sociedade europeia do século XVI, em que se podem citar como principais expoentes, na pintura barroca, Caravaggio (1571-1610) em “A dúvida de Tomé (figura 3), Velásquez (1599-1660) em “As meninas” (figura 4).

Figura 3 – “A Dúvida de Tomé” 1599, óleo sobre tela. Michelangelo de Marise Caravaggio. Potsdam – Alemanha.

 

Infográfico: Victoria Carvalho | @vickcaa

 

Figura 4 – “As meninas” 1656, óleo sobre tela. Diego Velázquez. Madri – Espanha.

 

Infográfico: Victoria Carvalho | @vickcaa

 

O barroco também pode ser visto na escultura, como por exemplo em Gian Lorenzo Bernini (1598-1680) “O êxtase de Santa Teresa” (Figura 5) onde podemos perceber os elementos do estilo artístico, contraste de claro e escuro, ideia de movimento e êxtase.

Figura 5 – “O êxtase de Santa Teresa” 1645-1652. Mármore e bronze. Gian Lorenzo Bernini. Capela Cornaro, Igreja de Santa Maria Della Vittoria. Roma – Itália.

 

Infográfico: Victoria Carvalho | @vickcaa

No Brasil, o Barroco é definido pelos historiadores como Barroco tardio, isso porque o estilo artístico só se desenvolve na metade do século XVIII, no ciclo do ouro, na região de Minas Gerais, região está composta por uma elite branca, ligada, em sua grande maioria, a portugueses, a escravos provenientes do continente africano e a mulatos, grupo este que será de profunda importância em nossa análise. Vale lembrar que os negros não só eram considerados como peças compradas em mercados, como também vistos como “mãos e braços” de seus senhores por realizarem praticamente todos os ofícios.

Mais uma vez o contexto histórico torna-se importante para compreendermos os movimentos da sociedade e política com reflexos na produção artística, porque, ao falarmos do ciclo do ouro na colônia Brasil, devemos retornar ao século XVIII e entendermos como esse ciclo econômico mudou drasticamente a dinâmica colonial.

O ciclo do ouro é o terceiro ciclo econômico presente no Brasil colonial, sendo os dois primeiros Pau-Brasil e Cana-de-açúcar. Por que devemos entender as particularidades deste ciclo para falarmos da arte barroco? Isso se dá pelo fato de o ciclo do ouro levar ao surgimento dos primeiros núcleos urbanos no Brasil colonial, onde até então tínhamos o Pau-Brasil como uma ação extrativista, e a Cana-de-açúcar produzida em grandes extensões de terras, engenho, onde os insumos alimentares era produzidos dentre da própria propriedade, e aquilo que não poderia ser produzido era importado da Europa.

A descoberta do ouro provocou um enorme ciclo migratório da Europa, dando-se destaque a Portugal; acredita-se que 40% da população da metrópole para o Brasil colonial, mais especificamente para a região de Minas Gerais, vieram em busca do ouro, criando a necessidade da ampliação da produção de alimentos e de bens de consumo na colônia, visto que demorava muito tempo para a chegada dos produtos vindos da Europa. Desta forma, esse grande contingente populacional leva a uma integração das regiões da colônia, e temos carnes vindas da região sul, e escravos vindo da região norte/nordeste, porque estas regiões perderam seus destaques com o fim do ciclo da cana-de-açúcar, e a mudança da capital da colônia de Salvador para o Rio de Janeiro, local de onde o ouro era levado para Portugal.

A chegada de tantos imigrantes e as grandes riquezas provenientes da extração do ouro acabam por criar uma elite colonial, que busca, na Europa, a erudição e os conhecimentos na intenção de – a qualquer custo – fazer parte do mundo metropolitano e, por isso, conhecimentos, debates, questionamentos presentes do mundo europeu do século XVIII acabam por chegar à colônia Brasil e, juntamente com eles, a arte barroca. Para exemplificar este ponto, trabalharemos com o conceito de Capital Cultural de Pierre Bourdieu[3], um autor contemporâneo ao barroco, que nos traz que a educação sem debates ou questionamentos acaba por perpetuar diferenças e padrões sociais e morais, mantendo a desigualdade social, que é vantajosa para o grupo dominante; sendo assim, podemos identificar como a educação e a arte europeia acabam por moldar o funcionamento da sociedade de mineira, isto porque sua elite local quer se distanciar da população “comum” da região, principalmente dos escravos, buscando diversos elementos, como os já citados, educar seus filhos na Europa e o uso da arte.

A arte barroca tem função central na organização da sociedade mineira, destacando-se dois pontos: Igreja Católica e elite colonial. A Igreja Católica usou a mesma ideia presente na Europa na colônia Brasil, que era difundir sua fé a partir da arte, e encontra, na região de Minas Gerais, um solo muito fértil, porque temos uma população europeia, indígena, mestiça e negra, uma organização urbana e riquezas, que acaba na construção de diversas igrejas e ordens, tendo sua arquitetura e suas decorações ao estilo barroco. Nesse contexto, inserimos a elite, porque, juntamente com a Igreja Católica, apresenta-se como um grande mecenas na produção artística, na intenção de se destacar socialmente; não podemos nos esquecer de que a religião não era vista somente como uma condição de fé, mas sim como sociedade, política e economia. Um bom exemplo para essa questão são os camarotes presentes nas igrejas, financiados e utilizados pelas elites, que, ao mesmo tempo em que se distanciavam das pessoas comuns, destacavam-se para estas mesmas.

Mas afinal de contas, qual era o barroco brasileiro? Para responder a esta pergunta temos que retomar o conceito já apresentado por Adorno (2021), justificando a arte não pela questão plástica, mas sim como os artistas se utilizam dela; aqui podemos citar alguns dois dos principais artistas, sendo eles Antônio Francisco Lisboa, Aleijadinho (1730-1814), Manuel da Costa Ataíde, Mestre Ataíde (1762-1830).

Ao observamos as produções artísticas, podemos rapidamente notar as técnicas da arte barroca, como o contraste entre claro e escuro e a demonstração de sentimentos. Porém o que nos chama mais a atenção não são as características que dão o nome de barroco a essa produção artística, mas sim o que a difere, como por exemplo,  na pintura do teto da Igreja de São Francisco de Assis, Ouro Preto, feita pelo Mestre Ataíde (figura 5), feita com todas as técnicas de coloração, de ilusão e de forma, porém com as fisionomias dos rostos com ares mais mestiços, com coloração da pele mais escura, pelo uso de cores mais vibrantes, o que nos mostra que todo estilo artístico se dá pelas mudanças, pela busca daquilo que faz sentido ao artista. Mestre Ataíde produz sua arte não só de seus conhecimentos técnicos, mas também por aquilo que ele vive, pelas pessoas com quem ele convive, pelo ambiente social do qual ele faz parte, um ambiente colonial, escravocrata e mestiço; sendo assim, esses elementos acabam por compor sua produção artística.

Os mesmos referenciais podem ser percebidos nas obras de Aleijadinho, que se utiliza daquilo que está a sua volta (figura 6);  vale lembrar que estes artistas não foram para a Europa estudar, mas sim aprenderam no então Brasil colônia, a partir de oficinas de arte, levando-nos a uma grande contradição ou a uma grande ironia, já que, seguindo o pensamento de Bourdieu, a elite que busca na Europa os modos de se distanciar da população, utilizando a arte como meio, acaba por criar uma forma em que esta dita população comum vem representada e marcada para toda a história a partir da própria arte barroca.

Figura 6 -Teto Igreja São Francisco de Assis. 1771. Mestre Ataíde. Ouro Preto – Minas Gerais

 

Infográfico: Victoria Carvalho | @vickcaa

Os debates a respeito da história da arte são contínuos e cada vez mais repletos de novas reflexões ligadas à produção da arte; não falamos somente do ato da produção, mas sim referente aos meios que levam à produção; desta forma, para entrarmos no próximo tópico, modernismo, faz-se necessário pensar na teoria proposta pelo filosofo Immanuel Kant (1724-1804), que trabalha suas teorias ligadas ao modo de se produzirem conhecimentos, modos de se produzir ciência, com destaque a dois títulos “Crítica a Razão Pura”[4] – 1781 e “Crítica a Razão Prática”[5] – 1788; no primeiro, discute-se a produção do conhecimento, o conhecimento verdadeiro; e, no segundo, as questões ligadas à moral e à sociedade. O texto que nos interessa de Kant é “Crítica da Faculdade de Julgar”[6] – 1790, onde o autor coloca que “A arte é o que é porque não serve para nada”. Esta frase nos leva a uma nova discussão a respeito da função da arte, porque, até o presente momento de nosso debate, a arte sempre esteve ligada a uma função social, sendo ela a de educar de acordo com os moldes da moral católica, separação social entre elite e população comum, mas Kant enuncia uma outra forma de se olhar e de pensar a arte, em que não importa somente a arte que foi produzida, mas sim como esta produção é sentida por quem a observa; aqui Kant retoma as ideias de belo iniciadas por Platão[7], que dizia que a arte nada mais era do que uma cópia, por isso não possuía valor; Platão faz essa afirmação dentro de um contexto de sociedade grega; Kant, por sua vez, fala de uma sociedade contemporânea ligada a revoluções, como a Francesa e as Industriais, colocando a arte como algo a ser visto e sentido individualmente, causando sensações, críticas e percepções próprias não só a quem produz, mas principalmente a quem a contempla; desta forma, esse pensamento será tido como norte ao debatermos a arte moderna na Europa e no Brasil.

Ao falarmos de modernismo, citamo-lo de diversas formas, como modernismo, vanguardas europeias ou vanguardas históricos, pois tal movimento artístico, surgido na Europa dentro do século XIX, promove diversas modificações no modo de se fazer a arte e principalmente no modo de se pensar a arte; ao falarmos de século XIX na Europa, devemos nos ater a suas ligações coloniais e imperialistas junto ao continente africano e asiático;  de onde chegam à Europa não somente as riquezas econômicas, mas também, as riquezas culturais e sociais; esse período histórico ficou conhecido como Belle Époque, tempo de grande euforia social, política e econômica, porém de curta duração, dado o contexto do modernismo, que traz a 1º Guerra Mundial, marcando  reflexos na produção artística.

Importante lembrar que a arte é um movimento de mão dupla, que, ao mesmo tempo em que a sociedade lança para a arte seus motes de produção e seus significados, a arte também manda para a sociedade formas de se ver, de pensar e de agir, sendo assim, o movimento modernista está amplamente ligado ao pensamento europeu do século XIX, tecnológico, inovador, dominador e, ao mesmo tempo, busca quebrar padrões estabelecidos nos cânones artísticos vindos de séculos passados. Esse modernismo artístico, agora livre para produzir arte, a partir do surgimento da máquina fotográfica e da tinta óleo, busca representar a vida a seu modo de ver e de viver, aplicar suas visões e sensações, utilizando cores e formas na busca de registrar, qual que seja sua impressão, algo ou alguém, não sendo necessário uma figura pública ou um local histórico, mas podendo ser somente uma pessoa ou somente um local.

Figura 7 – “Impressão, nascer do sol”. Óleo sobre tela – 1872. Claude Monet. Museu Marmottan Monet – França. Impressionismo

 

Figura 8 “Guernica” Óleo sobre tela – 1937. Pablo Picasso. Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia – Espanha. Cubismo

O modernismo no Brasil teve profundas referências nas vanguardas europeias, porque, desde o final do século XIX e começo do XX, a produção artística europeia passa por profundas mudanças, deixando de lado o academicismo, buscando outras formas de expressão; tais movimentos se aprofundam ao passar da Grande Guerra ou 1º Guerra Mundial e as mudanças artísticas chegam ao Brasil na busca de uma arte genuinamente brasileira, composta por elementos sociais e culturais, tendo na pintura exemplos como Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, entre outros. Todos utilizam seus conhecimentos das vanguardas europeias na criação de uma arte brasileira, em que criticam, por exemplo, a Academia de Belas Artes, pela imitação dos cânones europeus, sem referência à cultura brasileira.

Debate

Dentro desta chave de produção, faz-se necessária a compreensão da função destes negros e mulatos dentro da sociedade escravocrata e minerado, que, conforme citamos, estes homens e mulheres eram responsáveis por boa parte de tudo aquilo que era produzido na região de Minas, local em que a arte também se faz presente, representada, por exemplo, por ourives, marceneiros, sapateiros, construtores, arquitetos e pintores que, de forma direta ou não, acabam por expressar suas culturas e suas técnicas nas produções artísticas, apesar de que, na historiografia tradicional, colocarem-se estas produções ligadas ao colonizador e a sua cultura.

Neste momento, faz-se necessário um grande levantamento da produção artística denominada afro-brasileira e de seus produtores, levando-nos a questionar sobre quem foram os grandes produtores de arte no período barroco, quais suas origens e se receberam os devidos créditos por suas produções[8].

Nessa análise, devemos retomar a visão da arte barroca como a arte fundamentalmente brasileira; para tal, faz-se uma análise da utilização da arte como elemento da criação de um imaginário nacional. Tem-se o Barroco ligado ao período colonial, o neoclássico com o Império e a Escola Real de Ciência, Artes e Ofícios, ecletismo pré-moderno e modernismo como produções da República. Nessa chave, devemos compreender a função da Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, tendo sido criada em 1816 por D. João VI a partir da missão francesa, sendo posteriormente renomeada como Academia Imperial das Belas Artes, com a função básica de desenvolver a produção artística brasileira, que, até aquele período, era controlado pela Igreja Católica. Estes parênteses são importantes porque esta Academia retoma elementos de produção ligados à Europa, não indo de encontro a elementos produzidos pela arte brasileira, como por exemplo, o barroco que posteriormente será compreendido pela sua produção artística, repleta de elementos ligados à cultura africana, afinal tal arte era produzida por escravos vindos do continente africano e por mulatos. Esta tensão foi retomada por Mario de Andrade na viagem intitulada Caravana Modernista.

Para este tema, tomamos como base a citação de Clarival do Prado Valladares “Ninguém poderá estudar a história da cultura brasileira sem indicar a presença de pardos e de pretos entre os artistas relevantes, sobretudo no período setecentista e oitocentista”[9] (MENEZES NETO, 2017, p.18).

Esta citação é importante ao reafirmarmos a participação dos negros, dos pardos e dos mulatos na formação nacional brasileira, não somente no âmbito artístico, mas também pensando em elementos culturais e sociais, visão esta que acaba, em diversos momentos, entrando em choque com uma historiografia tradicional, ligada a uma visão positivista, que coloca a cultura do colonizador como elemento fundante de nações.

No ano de 1924, a intitulada Caravana Modernista, composta por Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e Paulo Prado decide viajar para as cidades históricas de Minas Gerais com a finalidade de acompanhar as missas da Semana Santa, e acaba por fazer uma viagem de produção artística e de análise do barroco. Para podermos compreender a participação dos modernistas nessa visão da arte barroca, faz-se necessária uma contextualização do movimento modernista no Brasil. Nessa visão, Mario de Andrade coloca o mulato como a solução do Brasil, isso porque o autor compreende que o mulato está ligado tanto “a Europa” como “a África” sendo fruto da miscigenação; vale lembrar que o Modernismo busca uma visão do nacional, onde o mulato se enquadra perfeitamente. Esta chave pode ser analisada a partir dos desenhos de Tarsila do Amaral (figura 9), como nos poemas de Oswald de Andrade e no ensaio produzido por Mario de Andrade “O Aleijadinho”[10] (1928).

A partir deste ponto, os modernistas começam a analisar o barroco como uma obra vinda desta miscigenação, em que se podem encontrar elementos junto à Europa, não só na produção de uma arte religiosa, como também nos elementos ligados a arte do continente africano, na técnica e na forma de representar as imagens, valendo-se de deformações, de elementos culturais e religiosos. Não podemos nos esquecer de que a produção artística deste período era um ofício e, por um lado, permitia ao artística, mesmo dentro de regras, colocar seus próprios elementos na produção; do outro, porém, dificultava-nos saber quem realmente produziu tal arte, como por exemplo, Aleijadinho, João Francisco Munizzi, mestre Valentim.

Figura 9 – Ilustração Ouro Preto, 1924. Tarsila do Amaral

Conclusão

A busca modernista por uma arte nacional mostra-nos que o barroco brasileiro é muito mais do que suas definições europeias, porque a mão de obra negra e mulata insere, nas suas produções, elementos próprios, que até então eram desconhecidos ou desvalorizados, não nos permitindo dar destaques a seus autores. Porém, não podemos definir o barroco como a arte nacional, como fizeram os modernistas, isso porque o Brasil é um país de tamanho continental que teve, durante a sua história, o contato com diversos povos que deixaram diversas marcas na formação cultural. Vale lembrar que o modernismo como pensamento ideológico surgido na Europa (século XIX) tem por finalidade a busca por rupturas, isto é, pela quebra de padrões já estabelecidos sobre o que é arte e como se faz arte; desta forma, no momento que o modernismo brasileiro elenca o barroco com a arte nacional brasileira, acaba por deixar para traz seu mote de criação na tentativa de se criar um novo Brasil.

Então, podemos considerar que o movimento artístico do inicio do século XX intitulado de modernismo cumpriu com maestria a plástica, as formas do modernismo europeu, porém ao se debater sua ideologia, o movimento modernista acaba por ser “moderno” por se utilizar de um discurso nacionalista e elitista, porque seus principais representantes faziam parte de uma elite que não teve vivência com os elementos representados por suas obras; como também, nacionalista, na intenção de se encontrar uma arte genuinamente brasileira, não levando em conta a diversidade cultural brasileira nem debatendo os problemas ligados à miscigenação do povo brasileiro, à violência e à escravidão, analisando somente como um fato positivo na formação identitária nacional.

Referências

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Notas

  1. ADORNO. Theodoro W. Sem diretrizes: Parva aesthetica. Tradução, apresentação e notas por Luciano Gatti – São Paulo: Editora Unesp, 2021
  2. TAPIÉ. Victor-Lucien. O Barroco.  tradução Armando Ribeiro Pinto – São Paulo: Editora Cultrix/Editora da Universidade de São Paulo. 1983
  3. BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução. 3.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992.
  4. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. 5a Edição. Trad.: Manuela Pinto e Alexandre Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
  5. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Trad. Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
  6. KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade de Julgar. Tradução de Fernando Costa Mattos. Petrópolis: Vozes; Braganca Paulista: Ed. Univ. São Francisco, 2016.
  7. PLATÃO. A República. 7. ed. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.
  8. MENEZES NETO. Hélio. “Entre o visível e o oculto: a construção do conceito de arte afro-brasileira” (dissertação de mestrado)
  9. MENEZES NETO, Hélio Santos. Entre o visível e o oculto: a construção do conceito de arte afro-brasileira. 2017. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. doi:10.11606/D.8.2018.tde-07082018-164253. Acesso em: 2021-05-28.
  10. ANDRADE. Mario de. “O Aleijadinho. In: Aspectos: Aspectos das artes plásticas no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Martins, Brasília: INL, 1975 [1928]
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