The manifestation of sociocultural life in the Argentinian context and the actuality of visual language in the works of Antonio Berni
SANTANA, Wesley Espinosa; TRINGGONI, Margareth. A manifestação da vida sociocultural no contexto argentino e a atualidade da linguagem visual nas obras de Antonio Berni. In: Aguarrás, vol. 8, n. 38. ISSN 1980-7767. São Paulo: Uva Limão, JUL/DEZ 2021. Disponível em: <http://aguarras.com.br/antonio-berni/>. Acesso em: [current_date format=d/m/Y].
Resumo
Pretende-se, neste artigo, analisar o contexto e a atualidade da linguagem visual nas obras de Antonio Berni como manifestação da vida sociocultural e instrumento de consciência, compreendendo os aspectos econômicos, sociais e políticos que sustentam desigualdades na história do povo argentino. Do início do século XX às recentes manifestações pelas ruas de Buenos Aires, Berni persiste como reputado artista contemporâneo. Por meio de sua arte, Berni amplia o propósito essencial do realismo social, colocando a sua arte a serviço do povo. Dispondo dos questionamentos de teóricos, como Galeano (1983), Agamben (2004) e Foucault (2008), objetiva-se compreender a estrutura da sociedade argentina e sua trajetória de luta por justiça ante o Estado biopolítico. Sincronicamente analisar, em algumas composições artísticas de Berni, a sintaxe visual em uma perspectiva semiótica, recorrendo aos apontamentos de Dondis (2003), Pierce (2005) e Santaella (2008). Estabelecer essa relação para que a prevalência da significação crítica seja o testemunho precípuo dessas obras.
Palavras-chave: Antonio Berni. Biopolítica. Semiótica. Desigualdade. Argentina.
Abstract
The aim of this article is to analyze the context and actuality of visual language in Antonio Berni’s works as a manifestation of sociocultural life and an instrument of conscience, understanding the economic, social and political aspects that sustain inequalities in the history of the Argentine people. From the beginning of the 20th century to the recent demonstrations in the streets of Buenos Aires, Berni persists as a renowned contemporary artist. Through his art, Berni extends the essential purpose of social realism, putting his art at the service of the people. Using the questionings of theorists such as Galeano (1983), Agamben (2004) and Foucault (2008), the objective is to understand the structure of Argentine society and its trajectory in the struggle for justice before the biopolitical state. Synchronously, to analyze in some artistic compositions by Berni, the visual syntax in a semiotic perspective, using the notes of Dondis (2003), Pierce (2005) and Santaella (2008). Establish this relationship so that the prevalence of critical meaning is the main testimony of these works.
Keywords: Antonio Berni; Biopolitics; Semiotics; Inequality; Argentina.
Introdução
Na manchete estampada na página do jornal El País: “O complexo paradoxo econômico argentino. O único país americano mais pobre do que um ano atrás”[1], vemos pelas manifestações nas ruas de Buenos Aires uma foto que justifica o seu título. São manifestantes reivindicando melhores condições de vida, empregos e serviços essenciais. Eles atravessam as ruas principais da capital, sinalizando palavras de ordem. Um destes manifestantes aparece erguendo uma placa com os dizeres: “Alberto, La inflacion e la hambre matan”.
O presidente argentino Alberto Fernández atravessa uma crise econômica e política, agravada por seus desencontros e dissonâncias com as ideias da vice Cristina Kirchner – ícone do peronismo – que após vinte anos das “panelas populares” – panelaços –, tem no país hoje 18,8 milhões de argentinos abaixo da linha da pobreza, com uma inflação de 48% ao ano. Na última semana, o governo anunciou um congelamento de preços de mais de 1500 produtos, valendo por 90 dias diante uma dívida com o Fundo Monetário Internacional de US$ 44 bilhões.[2]
Da gênese do capitalismo comercial e da exploração do Novo Mundo emergiram a estrutura colonial que nos mantêm à mercê da indiferença e da dureza pelo mando das elites econômicas nacionais e internacionais. Em meio ao obscurantismo das relações sociais que configuram a permanente desigualdade e pobreza na história política da Argentina, remetemo-nos à tela Manifestación (1934), do artista Antonio Berni (1905 – 1981), contemporâneo e visionário de um país latino-americano que, palco do enriquecimento de poucos e do empobrecimento da maioria, atravessou o século XX com indignação e dor expressadas em seus traços, sombras e cores.
Nossa proposta em nos debruçar sobre o contexto histórico da vida e da obra de Antonio Berni nos garante a certeza de que a resignação não é o único caminho. Da coragem em desbravar o Mar Tenebroso, dos tratados de divisão de terras ainda invisíveis e da condição humana de exploração pelo acúmulo de riquezas e da usurpação da alma autóctone, podemos observar nos rostos e cores de Berni a suavidade dos semblantes apavorados e a perfeição dos corpos castigados. A luta por uma justa sobrevivência, pelo clamor da vida e pela igualdade de direitos resumem-se na pequena frase e polemiza a obra: pan y trabajo.
A permanência histórica da realidade argentina é observada em toda a América Latina e vista desde a colonização. Segundo Eduardo Galeano,
os indígenas eram, como diz Darcy Ribeiro, o combustível do sistema produtivo colonial. “É quase certo – escreve Sergio Bagú – que às minas espanholas foram lançados centenas de índios escultores, arquitetos, engenheiros e astrônomos, confundidos entre a multidão escrava, para realizar um tosco e esgotador trabalho de extração. Para a economia colonial, a habilidade técnica destes indivíduos não interessava. Eles só eram contados como trabalhadores não qualificados” (GALEANO, 1983, p. 55).
Assim, neste artigo, propomos colocar luzes sobre o processo histórico na América Latina, sobretudo, na Argentina, no período em que corresponde as cores e os olhares de um artista que viveu o século XX sob a ideia de denunciar as mazelas advindas da colonização e do imperialismo, evitando desbotar, dia a dia, a indignação e a expectativa sobre as condições reais. Na perspectiva histórica, analisaremos algumas de suas obras numa crítica à permanência na trajetória humana da submissão, da desigualdade e da desumanidade. A vida, a política e a linguagem visual como representações e exemplos de uma performance de cores abundantes e críticas como a memória de sua obra, de cores reais como o sofrimento argentino de gaúchos, caboclos e das mães da Plaza del Mayo, da exploração de latifundiários dos pampas e burgueses portenhos que se enriqueceram sob o julgo da pobreza e do encantamento das mercadorias inglesas traz de Berni as cores vibrantes e reais de seu povo como significado e significante, e nos mostra como a indiferença e o desespero traduzem-se em afeto, resiliência e coletividade.
Antonio Berni: vida e obras
Berni era filho de imigrante italiano – Napoleón Berni – e da argentina Margarita Picco. Cresceu em Rosário, província de Santa Fé, onde estudou desenho e fez sua primeira exposição aos 15 anos. Sua aptidão se evidenciou cedo e, em 1925, foi agraciado com uma bolsa de estudos do Jockey Club, permitindo-lhe estudar na Europa de 1925 a 1930. Primeiramente vai a Madrid e, depois, em Paris, estudou com o escultor e pintor André Lhote (1885 – 1962) e o pintor Othon Friesz (1819 – 1949). Nesse contexto de efervescência das ideias e das vanguardas artísticas, brotam ideias socialistas e Berni assume uma pintura surrealista, caracterizada pela justaposição de elementos desconexos aproximados do mundo da fantasia, insulado do controle da razão.
Em 1932, de volta à Argentina, expõe suas obras surrealistas em Buenos Aires, recebendo muitas críticas e notoriedade. Em 1933, David Alfaro Siqueiros (1896 – 1974), um dos mais destacados artistas do movimento muralista mexicano, visitou a capital argentina. Nesse mesmo ano, Berni compôs com Siqueiros, Lino Enea Spilimbergo (1896 – 1964), Juan Carlos Castagnino (1908 – 1972) e o cenógrafo uruguaio Enrique Lázaro a equipe poligráfica responsável pelo único mural na Villa de Natalio Botana em Don Torcuato perto de Buenos Aires. Impactada pelo contato com Siqueiros, a obra de Berni passa a ter um propósito social. A arte mural com a qual Berni toma contato extrapola o consumo burguês, a circulação limitada do cavalete, e está à disposição da população, alcançando o propósito essencial de ser social, de todos e para todos. Então funda o grupo realismo social, sob influência de protagonistas renascentistas.
A arte mural fundamenta-se pela tomada dos espaços externos em que a composição artística visa à denúncia da opressão do colonizador, da ditadura e da exploração capitalista. Na Argentina de Berni, o panorama impossibilitava tais expressões extrínsecas. O governo jamais cederia muros para a expressão dessas denúncias. Com o objetivo de expressar tais sentimentos e colocar sua obra a serviço do povo, Berni compõe painéis de dimensões monumentais em busca de uma arte em ação que supere o divórcio entre as pinturas e o público. Um deles é Manifestación, um mural de rolamento que, mesmo fora da parede, estabelece relação de propósitos íntimos com o muralismo mexicano. Os representados na cena são pessoas fotografadas por Berni nas ruas de Buenos Aires. Na imagem, rostos gigantescos produzem o chamado de horror vacui, preenchimento, sem nenhum espaço livre, de toda superfície da tela.
A tela Manifestación pintada em aninhagem, sacos de açúcar de estopa, costurados à mão por Paule, esposa de Berni, é também um testemunho de reconhecimento aos trabalhadores dos engenhos de cana-de-açúcar, camponeses cruelmente explorados, que também exigiam seus direitos sem obtê-los. Berni escolhe um suporte que denuncia concretamente, congênere à metalinguística, o que está exposto na representação pictórica.
A leitura humanista de observação da realidade sofrida do povo em meio à crise dos anos 30, em Manifestación, é o meio visual mais direto de que participamos quando somos afetados pela tela de Berni. É um fator de identificação universal com o sentimento afigurado, uma vez que
conscientemente ou não, através da expressão facial e da gesticulação corporal. Um sabor amargo provocará em qualquer parte do mundo, a mesma reação: uma distorção dos músculos do rosto. Acrescente-se o medo à mesma expressão, e ela passará a comunicar o sofrimento provocado pela dor. […] são variações expressivas de significado universal, que podem transcender fronteiras nacionais, culturas e línguas diferentes. (DONDIS, 2003, p. 188).
Sendo a arte uma linguagem, sua manifestação é um instrumento de consciência cultural, social e política. Ela permite a expressão dos desejos, sonhos e pensamentos do artista, construindo novas formas de entrosamento entre objeto e interpretante, o significado de um signo, ampliando a interação das significações da matéria física à interpretação. Segundo Martucci,
a realidade não é mais do que o significado de nossas experiências; ela é socialmente construída. A interpretação e o significado que as pessoas atribuem às suas experiências constituem a própria experiência. As pessoas são seres simbólicos que criam ativamente seu mundo através da interpretação, que não é um ato autônomo, mas sim, coletivo: os indivíduos interpretam com o auxílio dos outros, os significados são construídos através de interações. (MARTUCCI, 2001, p. 167)
Na década de 1950, o seu interesse sobre a população pobre e proletária cresceu e Berni se viu produzindo uma crítica social por meio de personagens do cotidiano portenho sob a estética ora do realismo ora do surrealismo, lançando, posteriormente, um conjunto de obras sobre as populações indígenas e colagens e assemblagens baseados nos personagens Juanito Laguna e a prostituta Ramona Montiel. Segundo Eduardo Constantini, fundador e presidente do Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (MALBA), “ambos são arquétipos argentinos do início dos anos 60 nascidos de uma realidade social pós-industrial na periferia da cidade de Buenos Aires, mas que também poderiam ter surgido de qualquer cidade latino-americana” (CONSTANTINI, 2004).
Nessa sequência de trabalhos, utilizou-se de materiais reciclados retirados do lixo que encontrava pelas ruas de Buenos Aires. Finalmente, sua obra é coroada pela 4ª Bienal do Mercosul. A arte, como expressão política e crítica social, ganhava em Berni mais um aliado.
Diante do contexto histórico que precede a vida de Berni, vemos no final do século XIX a consolidação política da república argentina e independência simbolizadas pelo deus do Sol – Apu Inti – que, da mitologia inca com seus trinta e dois raios, ondulados e retos, representava as cores do céu e das nuvens da futura nação. O deus Sol dos incas e a Revolução de Maio (1810) uniram essas cores sob a égide da liberdade. Entretanto, essa liberdade configurou-se pela formação do Estado oligárquico liberal e suas disputas entre unitaristas de Buenos Aires e federalistas do resto do país, garantindo os interesses da burguesia portenha ligada à exportação e importação e dos latifundiários dos pampas na produção agrícola e pecuária. A maior parte da população estava concentrada na província de Buenos Aires.
O Estado argentino – em nossa leitura – formou-se, biopoliticamente, na base de uma sociedade organizada por duas classes dominantes, os donos de terra e os comerciantes do Rio da Prata. A Argentina foi o primeiro país da América Latina a se industrializar, sobretudo, pela exportação e pela entrada de capital inglês na construção de moinhos, frigoríficos e indústria lanífera. No final da década de 1930, o país portenho era considerado o mais rico da América Latina. Essa ascensão e modernização econômica deu-se pelo próprio Estado oligárquico através do aproveitamento das grandes extensões de terras doadas aos imigrantes que vinham sendo incentivados a criar raízes no país por meio do projeto de branqueamento da população em detrimento dos gaúchos que – população mestiça que vivia no interior – tornaram-se símbolo do atraso argentino. Entre 1880 e 1930, o processo imigratório passou do interesse estatal ao particular, e o país tornou-se uma nação de brancos. Dessa política imigratória, teve início a história dos Berni. Essa população que era de meio milhão de pessoas na independência chegou a, praticamente, cinco milhões em 1900.
Na década de 1920, a classe dominante argentina estava dividida, basicamente, entre a elite econômica pró-inglesa e a elite econômica pró-americana. O presidente Hipólito Yrigoyen, líder do movimento radicalista oriundo do Partido da União Cívica Radical, tornou-se presidente após a nova Lei eleitoral, pois recebeu em massa o voto de operários. Todavia, as oligarquias não tinham o que temer com Yrigoyen, pois nada havia de revolucionário em seu governo do qual o lema era “governar e não mudar nada”. Na verdade, grande parte dos seus apoiadores era de latifundiários e a reforma agrária estava fora de cogitação que, aliás, é, até hoje, grande parte dos problemas sociais da renda, do emprego e da pobreza no país. Yrigoyen foi o precursor do populismo argentino seguido por Juan Perón a partir de 1947. Em 6 de setembro de 1930, Yrigoyen foi deposto pelos militares e pela burguesia industrial com apoio dos EUA. Um dos motivos do golpe de Estado foi a tentativa de nacionalização da estadunidense Standard Oil (CÁCERES, 1992, p. 276-286).
Ao referenciarmos o Estado argentino como um Estado biopolítico, pensamos em como a organização social utilizou-se não apenas do trabalho manual e exploratório de seus compatriotas, mas sobretudo, da condução do modo de vida, do corpo e da política da sobrevivência. A exploração do trabalho no Estado biopolítico não é o suficiente, pois é necessário a exploração da própria vida com disciplina e controle sobre o modo de viver, o cotidiano, o consumo e o desejo da maioria da população. Segundo Michel Foucault,
a população é, portanto, tudo o que vai se estender do arraigamento biológico da espécie até a superfície do contato oferecida pelo público, ou seja, do ponto de vista de suas opiniões, das suas maneiras de fazer, dos seus comportamentos, dos seus hábitos, dos seus temores, dos seus preconceitos, das suas exigências, é aquilo sobre o que se age por meio da educação, das campanhas, dos convencimentos (FOUCAULT, 2008, p. 66).
A biopolítica é a expressão das relações de poder que se transformam a partir da ascensão burguesa na constituição do tecido social que se justifica pela exploração do trabalho mediante o controle dos meios de produção. O povo, a população ou a maioria de miscigenados encontram-se num único corpo biopolítico da luta desigual e da dupla alienação, a dos meios de produção e a da subsistência. O Estado biopolítico tem como paradigma o estado de exceção que, segundo Giorgio Agamben,
não aparece mais como o limiar que garante a articulação entre um dentro e um fora, entra a anomia e o contexto jurídico em virtude de uma lei que está em vigor em sua suspensão: ele é, antes, uma zona de absoluta indeterminação entre anomia e direito, em que a esfera da criação e a ordem jurídica são arrastadas em uma mesma catástrofe (AGAMBEN, 2004, p.89).
É nessa perspectiva que entendemos que o Estado biopolítico integra a todos, desigualmente, pois não há ninguém fora da lógica capitalista e da expansão hegemônica da doutrina liberal. Como forma de luta contra o estado de exceção que se realiza na exploração capitalista é legítimo se buscar a vida plena. Segundo Erik Wright, a maioria não deve buscar apenas por oportunidades, pois elas podem escapar em algum momento da sua trajetória de vida, mas sim, por uma vida plena regada a direitos sociais conquistados e institucionalizados em sua práxis de modo que se realizem como utopias reais[3].
Oportunidades iguais também sugerem que o problema central está naquilo que alguns chamaram de “igualdade do ponto de partida”: ou seja, a igualdade de oportunidades vale somente para o início e, caso você não aproveite as oportunidades, azar o seu. A culpa é sua, logo o sistema segue funcionando e você não pode reclamar (…). Uma vida plena é aquela na qual as capacidades e os talentos individuais se desenvolveram de tal forma que lhes é permitido buscar seus desejos, de modo que, num sentido mais amplo, conseguiram realizar tanto seu potencial quanto seus propósitos (WRIGHT, 2019, p. 33-34).
A riqueza não é infinita, como também não o é a vida. A desigualdade no mundo e, sobretudo, na Argentina de Berni, é sociopolítica-econômica-cultural-ideológica assentada sobre a ideia de que ser diferente é ser melhor do que o outro. Assistimos pela fresta do tempo que os europeus optaram por nos civilizar, tirar da barbárie. Com o uso da força e do convencimento constituiu-se uma cultura hegemonizante pelo eixo-atlântico do capitalismo sob a justificativa civilizatória da raça, cor e etnia numa filosofia teológica coroada pela monarquia absolutista e Igreja Católica. Após a Segunda Guerra Mundial, a Argentina permaneceu com a característica de país agroexportador, pois o desenvolvimento industrial da Argentina era dado até o limite imposto pelos ingleses e, posteriormente, pelos estadunidenses. Como ocorreu com o Brasil e a América Latina como um todo, tornar-se um país, economicamente, industrial é medido pelos interesses e valores das grandes potências do cerne capitalista-liberal. Em 1945, os argentinos viram o declínio do PIB e o déficit da balança comercial. Ocorreu o êxodo rural, aumento do desemprego e a diminuição do poder de compra dos salários, abaixando, ainda mais, a qualidade de vida da população (CÁCERES, 1992, p.283). Foi neste momento que Juan Domingo Perón tornou-se um político.
O coronel – filho de um grande criador de gado – Juan Perón destacou-se pela admiração ao fascismo italiano e, entre 1939 e 1941, participou do exército de Mussolini. No novo governo que derrubou Ramón Castillo, ele se tornou secretário do Trabalho e Bem-estar Social com a célebre frase de que acabaria com as lutas de classe na Argentina de forma a colocar todos os trabalhadores sob o controle do Estado. Criou a Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), cooptou líderes sindicais e expulsou comunistas e socialistas dos cargos de decisão. Dessa forma, todos os sindicatos eram obrigados a serem filiados na CGT com o risco de serem perseguidos e extintos. Durante esse período de governo militar, a educação sofreu mudanças com o fim do ensino laico e a introdução do ensino religioso católico nas escolas e universidades. Após um golpe da Marinha argentina, o governo militar chegava ao fim. Perón foi preso e sua amante Eva Duarte – Evita – iniciou uma campanha por sua libertação que ocorreu em 17 de outubro de 1945. Um ano depois, pelo Partido Lavorista, tornou-se presidente com imenso apoio popular, elegendo a maioria de deputados, senadores e governadores. Apesar de Perón ter alavancado projetos de industrialização, terminou o seu governo deposto por um golpe militar diante de uma crise econômica e falência do Tesouro Nacional. Entre 1955 e 1973 a Argentina foi governada pelos militares. Em 1973, Perón estava de volta, mas com 78 anos e doente morreu no ano seguinte.
Para termos uma ideia da situação da Argentina comparada com a do Brasil em relação à indústria e à escolarização, vemos que os governos argentinos apresentavam números muito maiores tanto nas vagas da indústria quanto nas taxas de matrículas. Em 1950, os portenhos tinham 31,8% de sua força de trabalho na indústria passando, em 1980, para 33,8% e, em sua taxa de matrícula, na escola secundária de 23% (total da população de 12 a 17 anos) para 59%. Já o Brasil, no mesmo período, havia 16,6% que estavam na indústria e apenas 11% matriculados e, em 1980, 26,6% na indústria e 32% na taxa de matrícula (BETHEL, 2005, p. 273)[4]. Com isso, percebemos que mesmo diante de uma crise generalizada na América Latina, a produção industrial e a escolarização apresentavam números expressivos pós-governo peronista.
Antonio Berni atravessou o populismo de Juan Perón e a ditadura de Gutierrez e Galtieri, observando e produzindo sua obra com o intuito de unir o social e o real na busca da vida plena. Neste caminho dos seguidos golpes de Estado, das interferências do imperialismo capitalista e da obediência das elites ao individualismo econômico, mostraram que o caminho estava cada vez mais distante daquilo que ele deseja ao protestar. Os inúmeros câmbios econômicos que desvalorizavam cada vez mais a moeda nacional ditavam as regras do estado de exceção.
Homens, mulheres, brancos, indígenas, pretos, pardos, crianças e velhos formam a massa multicolorida berniana de feições, de histórias e de lutas. Essa incursão permite vislumbrar e projetar na obra de Berni uma trajetória iconográfica pautada no inconsciente coletivo, cimentando princípios reivindicatórios que escancaram exploração e constroem narrativas que desafiam padrões e preservam uma condição reflexiva do signo.
Em uma análise semiótica, o signo é observado pela sua característica, e para Pierce, é um representâmen, é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém e cria, na mente dessa pessoa, um signo equivalente ou mais desenvolvido. O signo criado é denominado interpretante do primeiro signo. À vista disso, a obra de Berni
é algo que representa algo, sendo capaz de produzir efeitos interpretativos em mentes reais ou potenciais. Essa condição toda pintura preenche. Essa, não menos do que quaisquer outras. O que importa, no entanto, discernir é o modo como esta pintura particularmente representa o que professa representar e, em função disso, quais efeitos está habilitada a produzir em possíveis intérpretes (SANTAELLA, 2008, p. 88).
As obras de Berni compõem escolhas que intensificam a mensagem e o objetivo do artista, resultantes da hibridez tradicional às culturas latino-americanas, fruto do contexto apontado, e mesclam técnicas artísticas do cânone, fruto de sua formação, à colagem e xilogravura, alcançando ineditismo e excelência.
A composição é o meio interpretativo de controlar a reinterpretação de uma mensagem visual por parte de quem a recebe. O significado se encontra tanto no olho do observador quanto no talento do criador. […] A mensagem e o método de expressá-la dependem grandemente da compreensão e da capacidade de usar as técnicas visuais, os instrumentos da composição visual. (DONDIS, 2003, p. 132-133).
Em uma abordagem semiótica entende-se que Berni perpassa essas inquietações, apresentando a sua pátria como vertente decrescente de desvalorização da vida e do distanciamento da utopia real desde a sua origem. O século XX – do artista – é o século do aumento do empobrecimento, da superprodução e da superconcentração de renda, do Estado oligárquico aos militares, do peronismo ao destino de “Juanitos e Ramonas”. Berni tem uma intenção expressa na seleção e organização dos diferentes elementos que compõem suas imagens de Juanito Laguna e Ramona Montiel, seus personagens mais famosos, incorporando materiais de dejetos, resíduos e objetos encontrados pela periferia de Buenos Aires. O significado da matéria- -prima de suas obras está atrelado a sua ressignificação da crítica sobre a cultura do lixo e do processo civilizatório. Vemos nas sociedades modernas o parâmetro capitalista de ideologização neoliberal, um Estado à mercê dos interesses das classes dominantes que sufocam as agendas sociais da imensa maioria. O hiperconsumo e a cultura do lixo estão sob a ordem do dia no estado de exceção.
A observação dos fenômenos comunicativos nas criações simbólicas desse artista, representante das narrativas do Novo Realismo da América Latina, nos permite recorrer ao apontamento de Santaella no que se refere à análise semiótica, sendo que
as diversas facetas que a análise semiótica apresenta podem assim nos levar a compreender qual é a natureza e quais são os poderes de referência dos signos, que informação transmitem, como eles se estruturam em sistemas, como funcionam, como são emitidos, produzidos, utilizados e que tipos de efeitos são capazes de provocar no receptor (SANTAELLA, 2008, p. 4).
O homo sacer[5] torna-se regra e expande seu domínio sobre a maioria da população. Esse, como o morador de rua, desempregado da periferia, refugiado, desalentado e desprovido de direitos que vive em sua vida nua – a “vida sem valor” – sai da jurisdição romana e reaparece, biopoliticamente, arranjado numa nova historicidade, numa nova realidade que Berni nos promove com a sua arte. Segundo Agamben,
toda a sociedade fixa este limite, toda a sociedade – mesmo a mais moderna – decide quais sejam seus “homens sacros”. É possível, aliás, que este limite, do qual depende a politização e a exceptio da vida natural na ordem jurídica estatal não tenha feito mais do que alargar-se na história do Ocidente e passa hoje – no novo horizonte biopolítico dos estados de soberania nacional – necessariamente ao interior de toda vida humana e de todo cidadão (AGAMBEN, 2014, p. 135).
A sociedade argentina – sob um Estado biopolítico – definha em sua economia e direitos durante a vida de Berni e para além dela, mostrando o que sua obra sofreu de influência com a realidade que viveu. Ele, como fruto de seu tempo e de seu espaço, é contagiante em sua produção artística e angustiante em suas subliminaridades. O lixo – o que os outros já consumiram e não querem mais – é o símbolo da incapacidade do desenvolvimento social e econômico dos governos argentinos sob a égide da oligarquia liberal, latifúndios, burguesia urbana, militares e populismo. Segundo Chico de Oliveira,
a política institucional gira em falso, pois os condicionamentos e constrangimentos impostos pela globalização tornam inúteis e supérfluas as instituições democráticas. Na definição schmittiana, soberano é quem decide o Estado de Exceção. Os Estados Nacionais transformaram-se em Estados de Exceção: todas as políticas públicas são políticas de exceção. E quem decide entre nós? (OLIVEIRA, p. 115 IN: BORON (CLACSO), 2005).
Considerações finais
É por isso que, saído do Direito Romano, a figura agambeniana do homo sacer, é o personagem principal da obra de Berni. Do simbolismo ao realismo, da vertente elitista à crítica social, da pobreza à invisibilidade, essa figura, aparentemente abstrata é o maior produto do sistema capitalista desde o processo de colonização até o paradoxo do totalitarismo neoliberal e globalizante. Com a emancipação política, o Estado independente torna-se dependente das elites econômicas que garantem, permanentemente, o pacto econômico entre o centro e as periferias do capitalismo atual.
Referências bibliográficas
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________________. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo – 2ª ed. Belo Horizonte. Editora UFMG, 2014.
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OLIVEIRA, Chico de. As veias abertas para a América Latina. IN: BORON, Atílio (ORG.). Nova Hegemonia Mundial: alternativas de mudança e movimentos sociais. Tradução de Júlio César Casarin Barroso Silva, Conselho Latino-americano de Ciências Sociais – CLACSO. San Pablo, CLACSO Livros, 2005.
PIERCE, C. S. Semiótica e Filosofia, trad. de Octanny S. da Mota e Leônidas Hegenberg. São Paulo: Cultrix, 1972.
______. Semiótica, vol. XXXVI, trad. de Teixeira Coelho. São Paulo: Perspectiva, 2005.
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Notas
[1] Jornal El País, seção Internacional, artigo de Enrico González, 03 de agosto de 2021 18:15 BRT (www.brasil.elpais.com/internacional).
[2] Fonte: www1.folha.uol.com.br em 1º de novembro de 2021 intitulado Crise na Argentina reativa costume das panelas populares, de Sylvia Colombo.
[3] As utopias reais são um conceito trabalhado pelo sociólogo estadunidense Erik Olin Wright que, resumidamente, baseia pelo princípio do socialismo clássico de que “se deve dar a cada um de acordo com as suas necessidades e não as mesmas coisas para todo mundo” (WRIGHT, 2019, p. 35).
[4] Fonte: Força de Trabalho: International Labour Office, Economically Active Population, Estimates 1950-1980, Geneva, 1986, vol. III, table 3; matrícula no secundário: World Bank, World Development Report, 1984, table 25.
[5] No Direito Romano Clássico a figura do Ho Sacer, ou seja, o Homem Sagrado era daquele que é matável e insacrificável, “cuja função essencial na política moderna pretendemos reivindicar. Uma obscura figura do direito romano arcaico, na qual a vida humana é incluída no ordenamento unicamente sob a forma de sua exclusão (ou seja, de sua absoluta matabilidade), ofereceu assim a chave graças à qual não apenas os textos sacros da soberania, porém, mais em geral, os próprios códices do poder político podem desvelar os seus arcanos” (AGAMBEN, 2014, p. 16).