Chega de Saudade: Brazilian cinema and dialogues
CAVASSANI, Maria Fernanda. Chega de Saudade: cinema brasileiro e diálogos. In: Aguarrás, vol. 8, n. 38. ISSN 1980-7767. São Paulo: Uva Limão, JUL/DEZ 2021. Disponível em: <http://aguarras.com.br/chega-de-saudade/>. Acesso em: [current_date format=d/m/Y].
Resumo
O presente artigo tem como objetivo provocar interpretações acerca dos diálogos presentes no filme Chega de Saudade (2007) de Laís Bodanzky. Para tanto, os conceitos de polifonia e dialogismo propostos por Mikhail Bakhtin são fundamentais. Enquanto percurso analítico, primeiramente apresentamos e contextualizamos a narrativa cinematográfica. Na sequência, refletimos acerca dos conceitos de Mikhail Bakhtin e, por último, trazemos a análise do filme sob a perspectiva dialógica e polifônica.
Palavras-chave: Cinema. Polifonia. Dialogismo. Mikhail Bakhtin. Chega de Saudade.
Abstract
This article aims to provoke interpretations about the dialogues present in the film Chega de Saudade (2007) by Laís Bodanzky. To do so, the concepts of polyphony and dialogism proposed by Mikhail Bakhtin are fundamental. As an analytical path, we first present and contextualize the cinematographic narrative. Next, we reflect on Mikhail Bakhtin’s concepts and, finally, we analyze the film from a dialogic and polyphonic perspective.
Keywords: Cinema; Polyphony; Dialogism; Mikhail Bakhtin; Chega de Saudade.
Introdução
Em 1896 o Brasil realiza, na cidade do Rio de Janeiro, sua primeira exibição cinematográfica. Entre 1897 e 1898 começam as filmagens e produções em território brasileiro. Desde então, o país produz ficção, documentários, curtas-metragens e uma infinidade de narrativas audiovisuais.
O cinema brasileiro ganha projeção e torna-se significativo no cenário latino-americano. Atualmente, o Brasil conta com diversos festivais, muitos filmes que tratam dos mais variados assuntos e temáticas e vários diretores têm recebido reconhecimento internacional por suas obras.
Logo, a multiculturalidade brasileira aparece também no audiovisual. Não é difícil observar diálogos entre diversas obras de diferentes linguagens. Para além das adaptações, muitas produções fazem referências a outras, dialogando direta ou indiretamente com músicas, obras de arte, outros filmes etc. Laís Bodanzky (1969), cineasta brasileira, é uma dessas pessoas.
Diretora e produtora, Bodanzky se inspira em nomes de canções para nomear algumas de suas narrativas cinematográficas. Seu primeiro filme, lançado em 2001, traz a questão da saúde mental em primeiro plano e recebeu o nome de Bicho de Sete Cabeças (1979), icônica música de Geraldo Azevedo (1945).
O último longa-metragem de Bodanzky, Como Nossos Pais (2017), apresenta a história de Rosa, uma mulher de quarenta e poucos anos que vê sua vida mudar a partir de um segredo revelado por sua mãe, Clarice. A música, lançada em 1976 por Belchior (1946 – 2017) e eternizada na voz de Elis Regina (1945 – 1982), além de dar nome ao filme, ainda provoca interpretações e relações interessantes.
A narrativa aqui analisada sob a ótica dialógica de Mikhail Bakhtin[1] (1895 – 1975) também foi, também, nomeada com uma canção. Chega de Saudade (1958) de Vinícius de Moraes (1913 – 1980) e Tom Jobim (1927 – 1994), uma das músicas mais conhecidas e importantes da Bossa Nova traz muitas significações ao filme.
O cinema, assim como outras mídias, tem um caráter dialógico e ativo, ou seja, seu conteúdo não é recebido de maneira passiva, pelo contrário, ao entrar em contato com determinado produto midiático, as pessoas, a partir do que já experenciaram, fazem novas conexões e atribuem novos sentidos àquela obra.
Logo, assistir a um filme, ouvir uma música, visitar um museu, entre tantas outras experiências midiáticas, nos possibilitam transformar aquilo que já sabemos e viver situações novas, entrando em contato com diferentes discursos e contextos.
Contexto e alteridade. Bakhtin entende que o discurso tem esses dois movimentos: precisa de uma situação e do outro para existir. Sobre texto e contexto de uma obra, Antonio Cândido (1980), grande estudioso do filósofo russo, afirma que
a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra. […] Sabemos ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, mas como elemento que desempenha certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno. (CÂNDIDO, 1980, p. 5-6)
As obras com as quais entramos em contato são internalizadas e junto de nosso repertório prévio, ressignificadas. O famoso ditado ‘nada se cria, tudo se copia’ tem (provavelmente) relação com o fato de que as coisas não partem do zero, sempre haverá relações com outros tantos repertórios.
Repertórios estes que formam uma rede de significações entre várias obras. Cecília Sales, ao trazer este conceito, afirma que
Uma decisão do artista tomada em determinado momento tem relação com outras anteriores e posteriores. Do mesmo modo, a obra vai se desenvolvendo por meio de uma série de associações ou estabelecimento de relações. (SALLES, 2006, p. 28)
Com o cinema, como discutido, não seria diferente. Bodanzky deixa claro o caráter dialógico de sua obra quando nomeia os filmes com canções, buscando em outras produções elementos que possam adquirir novas interpretações para sua própria narrativa.
Sem pretensões de esgotar as possibilidades intertextuais entre a canção o filme, o presente artigo tem como objetivo promover algumas conexões e reflexões sobre as obras partindo dos conceitos de dialogismo e polifonia do filósofo russo Mikhail Bakhtin.
Primeiramente, filme e canção são apresentados e contextualizados. Na sequência, os conceitos de dialogismo e polifonia são discutidos. Por último, a análise do filme sob a luz de Bakhtin e dos possíveis diálogos com a música.
O filme
Sinopse: História ambientada durante uma noite de baile, num clube de dança em São Paulo. A trama começa ainda com a luz do sol, quando o salão abre suas portas, e termina ao final do baile, pouco antes da meia-noite, quando o último frequentador desce a escada. O espectador acompanha, em uma única noite, os dramas e as alegrias de cinco núcleos de personagens frequentadores do baile. Mesclando comédia e drama, Chega de Saudade aborda o amor, a solidão, a traição e o desejo, num clima de muita música e dança.
Um salão de baile para a terceira idade, na cidade de São Paulo, é o cenário para o desenrolar da narrativa cinematográfica Chega de Saudade (2007). Em primeiro plano, o filme aborda o envelhecer, as inquietações e alegrias da passagem do tempo nas vidas de várias pessoas, principalmente das mulheres.
Bodanzky afirma que o salão, inclusive, é também personagem no filme: “mais do que uma locação, o salão União Fraterna, onde o filme foi rodado, em São Paulo, é personagem de Chega de Saudade (BODANZKY, 2008, p.11)”.
Não há apenas um ou uma protagonista, mas vários personagens que assumem o papel principal conforme a necessidade da narrativa. Ainda que não haja protagonismo, duas das personagens acabam se sobressaindo por representarem a dicotomia entre a juventude e o envelhecer: Bel (Maria Flor) e Marici (Cássia Kiss).
A primeira, jovem, está no baile para acompanhar o namorado Marquinhos (Paulo Vilhena), DJ da festa. A segunda, mais velha, sente-se incomodada com a presença de Bel, pois o namorado Eudes (Stepan Nercessian) sente-se atraído pela jovem.
As questões sobre envelhecer permeiam toda a narrativa. Dona Alice (Tônia Carrero) e Álvaro (Leonardo Villar) trazem o debate acerca dos relacionamentos longínquos. A personagem Rita (Clarisse Abujamra), a questão da libido. Elza (Betty Faria) e Nice (Miriam Mehler), sobre divórcios e namoros.
Para a análise fílmica, adotamos as perspectivas dialógicas e polifônicas de Bakhtin, propondo uma reflexão que busque na narrativa cinematográfica elementos da música Chega de Saudade.
A música
Uma das canções mais importantes para a MPB é, sem dúvida, Chega de Saudade, composta por Vinícius de Moraes e Tom Jobim em 1958. Cantada por inúmeros artistas desde então, suas melodia e letra são conhecidas nacional e internacionalmente, sendo eternizada na voz de João Gilberto:
Vai, minha tristeza
E diz a ela que sem ela não pode ser
Diz-lhe numa prece
Que ela regresse
Porque eu não posso mais sofrerChega de saudade
A realidade é que sem ela não há paz
Não há beleza
É só tristeza e a melancolia
Que não sai de mim, não sai de mim, não saiMas, se ela voltar
Que coisa linda, que coisa louca
Pois há menos peixinhos a nadar no mar
Do que os beijinhos que eu darei na sua bocaDentro dos meus braços
Os abraços hão de ser milhões de abraços
Apertado assim, colado assim, calado assim
Abraços e beijinhos, e carinhos sem ter fim
Que é pra acabar com esse negócio de você viver sem mimNão há paz
Não há beleza
É só tristeza e a melancolia
Que não sai de mim, não sai de mim, não saiDentro dos meus braços
Os abraços hão de ser milhões de abraços
Apertado assim, colado assim, calado assim
Abraços e beijinhos, e carinhos sem ter fim
Que é pra acabar com esse negócio de você viver sem mimNão quero mais esse negócio de você longe de mim
Vamos deixar desse negócio de você viver sem mim(JOBIM, 1958)
Essa é uma música sobre a dor de perder um amor. Usando da personificação, o eu-lírico pede que a tristeza vá buscar sua amada. O sujeito não é capaz de viver e se alegrar com o dia a dia sem estar ao lado da pessoa que deseja que retorne.
Percebe-se um permanente estado de nostalgia na canção, como se houvesse necessidade de viver no passado, sobretudo quando a amada ainda estava presente. Saudade, amor não correspondido e lamento são as temáticas mais recorrentes na música.
A canção tem uma composição simples, mas uma carga poética expressiva. Usa da delicadeza e do diminutivo de algumas palavras para comover o ouvinte. E se a saudade é tema da canção, é, também, assunto central na narrativa cinematográfica Chega de Saudade (2007).
Dialogismo e Polifonia: breves considerações
Certamente um dos mais importantes filósofos da linguagem, Mikhail Bakhtin (1895 – 1975) tem uma vasta obra que aborda, principalmente, a maneira como criamos, compreendemos e interagimos com textos visuais, gestuais, orais e escritos, refletindo, também, como os próprios textos dialogam entre si.
O filósofo russo afirmou que temos responsabilidade ativa quando estamos diante de um texto. Somos agentes, atribuímos significados, fazemos relações com outros textos e tomamos partido, ou seja, entramos em contato com a obra de maneira ativa:
Os produtos não são simplesmente ‘consumidos’ (no sentido de ‘usados e gastos’). Pelo contrário, as proposições ‘circulam’, evidentemente trabalhadas, tensionadas, manipuladas, reinseridas nos contextos mais diversos. O jornal pode virar papel de embrulho e lixo, no dia seguinte, mas as informações e estímulos continuam a circular (BAKHTIN, 1986, p. 2).
Um texto reverbera no mundo mesmo quando não existe mais fisicamente. Por estar inserido em um contexto social, as obras relacionam-se, referenciam-se e coexistem ao lado de inúmeras outras produções. E o homem, enquanto um ser sociável, usa dessa linguagem para ser e estar no mundo.
A linguagem, portanto, organiza a vida, nos singulariza e nos possibilita o contato com nossos pares. Participamos das atividades sociais, sendo capazes de pensar e agir de maneira racional e isso só é possível, portanto, porque temos a capacidade pensar.
Com a linguagem surge a língua e com ela, o discurso:
A língua em sua integridade concreta e viva e não a língua como objeto específico da linguística, obtido por meio de uma abstração absolutamente necessária de alguns aspectos da vida concreta do discurso. Mas são justamente esses aspectos, abstraídos pela linguística, os que têm importância primordial para nossos fins. (BAKHTIN, 2008, p. 207)
Somos atravessados por inúmeros e múltiplos pontos de vista e visões de mundo, cotidianamente nos comunicamos e interagimos com nossas perspectivas pessoais, mas que foram construídas a partir de outras ideias e percepções.
E nessa busca por dar sentido ao mundo, as pessoas entram em contato umas com as outras, buscando e produzindo significados discursivos, polifônicos e dialógicos, em um emaranhado infinito de vozes de outros discursos que aparecem implícita ou explicitamente.
Somos, portanto, seres dialógicos e polifônicos. Dialógicos porque, ao interagir, fazemos referência a outros discursos e polifônicos porque esses discursos absorvem e deixam entrever tantas outras vozes externas, sendo assim, um texto nunca está sozinho.
Polifônico e dialógico, Chega de Saudade é um filme que não apenas faz referência, mas, também, celebra e homenageia a canção que lhe empresta o nome.
Chega de Saudade: possíveis diálogos
Filme e canção se confundem quando o termo Chega de Saudade é digitado nos sites de buscas. Alguns resultados dizem respeito à canção, outros, à narrativa cinematográfica. E, de fato, existe um diálogo importante e interessante entre as obras.
Primeiro ponto a se considerar é que o filme não tem a pretensão ou o objetivo de ser uma adaptação da música para o cinema. Não é, então, uma releitura, mas uma produção cinematográfica que propõe possibilidades interpretativas para além da história que é contada.
A começar pelo título. A narrativa cinematográfica traz um enredo que coloca a terceira idade em evidência. Os personagens parecem confortáveis com suas vidas e idade, entretanto, o passado vem à tona em muitos momentos, através de lembranças, músicas, pessoas etc.
Ainda que esse passado seja visitado em vários momentos, os personagens tentam permanecer no presente, buscando deixar a saudade do que já viveram, das pessoas que passaram por suas vidas e daquilo que foram e já não são para focar naquilo que estão vivendo.
Portanto, deixar a saudade de lado é, dessa maneira, dar-se a oportunidade de viver o presente e pensar no futuro. Bodanzky aborda as recordações com sensibilidade e cuidado, passando a mensagem de que é também possível experienciar uma vida interessante na terceira idade.
Um outro elemento interessante quando a cineasta nomeia o filme com o nome da canção é a possibilidade de novas e diferentes interpretações para a obra de Vinícius de Moraes e Tom Jobim que não as pensadas originalmente pelos compositores.
A música adequa-se ao enredo e o enriquece. Todos os elementos mais significativos da canção estão presentes, visualmente, na narrativa cinematográfica: amor não correspondido, saudade, desencontros e a busca por não estar só.
Ainda que toda a narrativa evidencie a temática da saudade, há dois momentos, ao final do filme, em que as obras dialogam de maneira ainda mais intensa, fazendo com que os espectadores que conhecem a música lembrem-se dela.
O primeiro deles, é o momento em que uma das personagens, Marici (Cássia Kiss) está deixando o baile e é seguida por Eudes (Stepan Nercessian), seu namorado. Ela está brava porque ele flertou a noite toda com outra pessoa. Neste momento, ele diz que está com saudade, que é para ela entrar no carro e, juntos, irem embora.
O segundo momento é, na verdade, a última cena do filme. As portas do salão de baile estão sendo fechadas, as luzes apagas e a música Chega de Saudade começa a tocar. Um expressivo final para um filme que conversa tanto com ausências e despedidas.
Dialógica e polifônica, a narrativa de Bodanzky promove relações explícitas com a canção de Vinícius de Moraes e Tom Jobim, mas, também, dialoga com outras temáticas, como o envelhecer (principalmente feminino), o conflito geracional e a sexualidade na terceira idade.
Bodanzky faz desse um filme em que realidade e ficção se cruzam, propondo reflexões acerca da vida (e da morte), do esquecimento e da saudade, é uma crônica sobre um cotidiano belo, com camadas a serem descobertas, sem idealizações.
Assistir a Chega de Saudade sob o olhar bakhtiniano, abre-nos um leque de possibilidades analíticas, a escolha de analisar o filme relacionando-o com a canção de mesmo nome é apenas uma delas.
Considerações finais
O presente artigo analisou o filme Chega de Saudade (2007) de Laís Bodanzky sob a ótica dialógica e polifônica de Mikhail Bakhtin, apontando para conclusões interessantes. A primeira diz respeito à música Chega de Saudade (1958).
Bodanzky dirige um filme sobre o envelhecer, a passagem do tempo. Os personagens de sua narrativa estão lidando com as lembranças de um passado, por vezes, distante. A música também fala da falta, daquilo que já passou, de lembranças.
O discurso do filme é carregado de múltiplos pontos de vista e perspectivas que ficam evidentes a partir dos personagens. Enquanto seres dialógicos, ao entrarmos em contato com o filme, podemos questionar vozes e comportamentos, em um exercício de alteridade, nos colocar no lugar do outro.
Dialógico e polifônico, muitas vozes ecoam no filme Chega de Saudade (2007). Sendo a música que dá nome à narrativa a principal delas. Bodanzky conseguiu criar uma história que não copia a canção, mas dialoga com ela, trazendo mais uma camada significativa para Chega de Saudade.
Referências
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 3a ed., São Paulo: Hucitec, 1986.
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução Paulo Bezerra. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
BODANZKY, L. Chega de Saudade. São Paulo: Buriti Filmes, 2007.
BODANZKY, L. (2008). O tema do filme Chega de Saudade. Bolognesi, L. (Ed). Chega de Saudade (pp. 11-12). São Paulo: Imprensa Oficial.
CANDIDO, A. Literatura e sociedade. São Paulo: Editora Nacional, 1980.
JOBIM, T. (1958). Chega de saudade. Rio de Janeiro: Editora Musical Arapuã. Disponível em: <http://www.jobim.org/jobim/handle/2010/11006>. Acesso em: 15/nov, 2021.
SALLES, Cecília. Redes da Criação: Construção da obra de arte. São Paulo: Editora Horizonte, 2006.
Nota
[1] Foi um filósofo e pensador russo. Pesquisou, principalmente as linguagens humanas e as culturas. Seus estudos se dedicaram a compreender os diálogos presentes nos textos. Foi responsável por criar os conceitos de polifonia e dialogismo, utilizados até hoje em diversas áreas do conhecimento.