Edmur, the truck and documentaries in first person
GERVILLA, Lucas. Edmur, o caminhão e documentários em primeira pessoa. In: Aguarrás, vol. 8, n. 37. ISSN 1980-7767. São Paulo: Uva Limão, JAN/JUN 2021. Disponível em: <http://aguarras.com.br/edmur/>. Acesso em: [current_date format=d/m/Y].
Resumo: Resultado de reflexões feitas antes, durante e depois da realização do curta-metragem Edmur e o Caminhão (2018), dirigido pelo próprio autor e comissionado pelo Canal Futura. Trabalhando com o pensamento de teóricos e críticos do documentário contemporâneo como, Bill Nicholls, Jean-Louis Comolli, Jean-Claude Bernardet, Fernão Ramos e Consuelo Lins, o texto aborda diferentes formas de se pensar a criação do documentário em primeira pessoa e algumas proximidades desse formato de filme com a ficção. O autor apresenta anotações feitas durante as filmagens do curta-metragem e as analisa com base na fundamentação teórica.
Palavras-chave: Autobiografia, Documentário Performático, Narrativa em Primeira Pessoa, Processo Artístico.
Abstract: The article is the result of reflections made before, during, and after the creation of the short movie Edmur and his Truck (2018) directed by this author himself and commissioned by the Canal Futura. Based on thoughts of theorists and critics of the contemporary documentary as Bill Nicholls, Jean-Lous Comolli, Jean-Claude Bernardet, Fernão Ramos, and Consuelo Lins the text addresses different forms of thinking the creation of documentaries in first person and how this kind of movie is connected to fictional films. The author uses notes made in the course of short movie and analyzes it based on the theoretical foundations.
Keywords: Artistic Process, Autobiography, First Person Narrative, Performative Documentary.
Introdução
Idealizei o filme Edmur e o Caminhão[1] em 2010, quando comecei a ter um maior contato com trabalhos considerados “documentários de busca” (BERNARDET, 2005, p. 142). Na época eu trabalhava na produtora de cinema e vídeo Paleo TV, junto ao cineasta Kiko Goifman, autor do filme 33 (2002). Ao lado de Passaporte Húgaro (2001), de Sandra Kogut, 33 é um dos primeiros documentários de busca feitos no Brasil. Esse tipo de filme retrata um processo no qual o diretor ou diretora se lançam a campo para encontrar alguém ou alguma coisa. Em 33, Goifman procura por sua mãe biológica, enquanto em Passaporte Húngaro, Kogut busca obter a cidadania húngara.
Tive a oportunidade de trabalhar em dois documentários desse gênero produzidos pela Paleo TV. No primeiro, Querida Mãe (2009), a diretora Patrícia Cornils refaz trajetos mencionados em cartas que sua mãe escreveu à sua avó. Já em Sou Negro, Não Sei Sambar (2010), o cineasta Patricio Salgado, neto de um dos fundadores da escola de samba Nenê de Vila Matilde que nunca teve ligações com a escola, busca estabelecer relações afetivas com o samba. Uma característica desses, trabalhos é o fato de eles serem feitos em primeira pessoa. Não se trata apenas de uma colocação pronominal e sim “de uma pessoa que se funde num personagem” (Ibid, 2005, p. 152).
Depois de participar do processo desses filmes, comecei a criar o projeto do meu próprio documentário de busca. Quando nasci, em 1984, meu pai, Edmur, já trabalhava como caminhoneiro e o universo rodoviário fazia parte da nossa família. Naquele tempo, ele dirigia um Chevrolet C60 1975, comprado em 1979, seu primeiro caminhão próprio. O C60 foi vendido em 1999, mas permaneceu nas memórias familiares. Assim surgiu o desejo de fazer Edmur e o Caminhão, um documentário em que eu e meu pai procuraríamos pelo paradeiro do Chevrolet.
Antes de prosseguir com o processo criativo do filme, o artigo irá abordar algumas características do documentário em primeira pessoa.
Documentários em primeira pessoa
Se há no campo cinematográfico uma discussão tão antiga quanto o próprio cinema, decerto é a tentativa de determinar o que é um documentário e o que o difere da ficção. Quem mais se aproximou dessa definição foi o escocês John Grierson, na década de 1930, ao afirmar que o documentário é o “tratamento criativo da realidade” (apud NICHOLLS, 2016, p. 30). Anos depois, o próprio Grierson voltou a dizer que “‘documentário’ é uma denominação desajeitada, mas deixemos assim” (apud LABAKI, 2006, p. 37).
Dentre os estudos mais recentes, pode-se dizer que os documentários “falam sobre o mundo que compartilhamos com clareza e envolvimento” (NICHOLLS, 2016, p. 25), ou ainda, que esse tipo de filme “se caracteriza como narrativa que possui vozes diversas que falam do mundo, ou de si” (RAMOS, 2008, p. 24). O que se mostra recorrente nas pesquisas sobre o documentário é que ele, certamente, surgiu como um objeto de curiosidade (ou de compreensão) pelo outro. A novidade no documentário contemporâneo é que “esse outro muitas vezes está dentro da própria pessoa” (RUFFINELLI, 2017, p. 13).
A tecnologia tem influência nas novas formas de se fazer cinema. Graças a ela, é possível produzir trabalhos com orçamentos menores e equipamentos de simples operação. Devido ao acesso à tecnologia e às facilidades proporcionadas por ela produzimos cada vez mais informações e imagens, mas também tendemos a perder mais informação agora do que em qualquer outro tempo do passado. É como se tornasse urgente preservar vestígios e lampejos da memória para torná-la imagem e narrativa (CURSINO; LINS, 2010, p. 92).
Em meio a esse excesso de dados, sejam eles digitais ou não, verificamos filmes narrados em primeira pessoa e um uso cada vez maior de arquivo em variadas narrativas. Garimpar imagens, informações e montá-las é uma tendência da produção documental superestimulada pelo complexo campo de produção de informação (Ibid, 2010, p. 96).
No documentário em primeira pessoa o tratamento criativo da realidade é feito pelo realizador ou realizadora do filme. A realidade qualquer, ou a realidade do outro, passa a ser a minha – ou nossa – realidade. Nesses filmes, “é geralmente o ‘eu’ que fala, estabelecendo asserções sobre sua própria vida” (RAMOS, 2008, p. 23).
A narrativa em primeira pessoa se caracteriza por um aspecto autobiográfico, ou autoetnográfico. Com uma história centrada no eu ou nós, esse tipo de trabalho se enquadra em um modo o qual Bill Nicholls (2016, p. 52) chama de modo performático. Um estilo de documentário que “enfatiza o aspecto subjetivo ou expressivo do próprio engajamento do cineasta com um tema […] rejeita ideias de objetividade em favor de evocação e afeto” (NICHOLLS, 2016, p. 52).
Cabe aqui ressaltar que a palavra performance pode trazer uma interpretação diferente da proposta por Nicholls. Não é raro encontrar associações do modo performático às performances artísticas, como dança e teatro. Retratar uma dessas linguagens não necessariamente faz com que o filme seja um documentário performático. O que caracteriza esse modo é a autoapresentação, “a apresentação do self diante da câmera no documentário poderia ser chamada de performance” (Ibid, 2006, p. 32). Comolli (2008, p. 53) diz que esse processo é como “produzir a mise-en-scène de si mesmos”, ou ainda, é um processo de “auto-mise-en-scène” (Ibid, 2008, p. 85).
O conceito de self também pode ser ressignificado no contexto das redes sociais digitais. Não que as populares lives e selfies não possam ser consideradas performances para a câmera; mas, no documentário performático, a ideia de self está muito mais relacionada à uma autodireção do que à uma autofilmagem. “Entra nesses filmes um tom autobiográfico […] os filmes performáticos dão ainda mais ênfase às características subjetivas da experiência e da memória” (Ibid, 2006, p. 208-209). Todo esse “poder” concedido à pessoa que fala sobre si mesma em um filme pode levar a alguns questionamentos por parte do espectador, entre eles “o quão real é aquilo que está se assistindo?” ou “será que essa pessoa é assim mesmo?”.
Embora essas perguntas estejam presentes em praticamente qualquer documentário, no caso dos feitos em primeira pessoa há um diferencial: quem é autorretratado se autodirige. Ou seja, o autor do filme decide, por conta própria, o que será apresentado ao público. Desse modo, “podemos falar de uma vida pessoal que se molda conforme as regras de ficção. Ou de uma ficção que se alimenta diretamente da vida pessoal […] uma ficção que coopta a vida pessoal”. (BERNARDET, 2005 p. 149), acreditar ou não no que é mostrado é parte do acordo que o espectador faz com o filme. Para que esse pacto funcione, é preciso ter em mente que “o documentário é um tratamento criativo da realidade, não uma transcrição dela” (NICHOLLS, 2016, p. 56). Caso contrário, poderá haver uma frustração ao se confrontar a veracidade dos fatos retratados no filme.
Edmur, o caminhão e o risco do real
O curta-metragem Edmur e o Caminhão, assim como os filmes mencionados na introdução deste artigo, são, simultaneamente, documentários de busca, performáticos e em primeira pessoa. De busca porque o filme é feito durante a busca pelo pelo caminhão; performático por ser autobiográfico; e em primeira pessoa por eu ser, ao mesmo tempo, diretor e personagem.
Em um primeiro momento, a realização de um trabalho como esse pode parecer simples. Porém, “um outro ponto sobre esses filmes é a questão de serem projetos pessoais que, por isso, envolvem riscos para a pessoa do cineasta”. (BERNARDET, 2005 p. 147). Os riscos aos quais Bernardet se refere não são à integridade física ou segurança das pessoas envolvidas, mas sim o “risco do real”. (COMOLLI, 2008, p. 169). Esse risco está relacionado ao que pode – ou não – ser encontrado durante as filmagens, e a forma como isso pode acontecer.
Em um documentário de busca “não há uma preparação do filme (a preparação é a própria filmagem), não há uma pesquisa prévia; a pesquisa, que frequentemente no documentário é anterior à filmagem, é a própria filmagem”. (BERNARDET, 2005 p. 144).
Foi o que aconteceu em Edmur e o Caminhão, não houve pesquisa prévia e, também, fiz questão de não utilizar recursos eletrônicos durante o processo, tais como internet ou bancos de dados de veículos. A intenção sempre foi procurar in loco por pistas e pessoas que poderiam saber sobre o paradeiro do caminhão, como ex-proprietários, mecânicos e outros caminhoneiros. Mesmo porque se, logo de início, descobríssemos que o veículo não existia mais, não haveria filme.
Contudo, esses riscos não são tão prejudiciais quanto talvez pareçam, eles podem ser trabalhados a favor do filme, sendo que “o não-controle do documentário surge como a condição de invenção. Dela irradia a potência real deste mundo” (COMOLLI, 2008, p. 177). Ajustes e novos redirecionamentos podem ser feitos ao longo do processo fílmico, à medida em que os imprevistos ocorrem. É como se o filme tivesse a sua rota recalculada ao longo das filmagens, algo que aconteceu diversas vezes em Edmur e o Caminhão, como é apresentado mais adiante.
Outro fator de risco do real é filmar um outro que “sabe que é filmado, ele sabe confusamente o que filmar significa, o que ele não sabe muito bem é que nós, os filmadores, não sabemos nada sobre o que ele vai fazer” (Ibid, 2008, p. 54-55). Esse não saber é agravado nos filmes onde não há um contato anterior com os personagens. Mas é justamente esse fator surpresa que pode trazer as peculiaridades do filme.
Por se tratar de um tipo de filme subjetivo, os elementos apresentados estão sempre sujeitos a serem ressignificados devido às relações afetivas que se tem com eles. Por exemplo, “retomar uma imagem de arquivo é como um ato de resistência, também persistir na aproximação apesar de tudo que o acontecimento representa; apesar da inacessibilidade ao fenômeno, é querer não se distanciar daquilo”. (CURSINO; LINS, 2010, p. 97). Isso acontece com o próprio Chevrolet C60: para muitos, ele é apenas um caminhão. Para nós, ele é um acionador de memórias, um personagem de nossas vidas. Certamente, a inclusão desses elementos no filme não irá causar no espectador o mesmo impacto que causam em quem possui uma relação com eles, mas, se irão causar ou não alguma reação, é um outro risco ao qual o trabalho está sujeito.
Durante o ano de 2015 e parte de 2016 inscrevi o projeto do filme em alguns editais e mecanismos de financiamento. O que por si só já é um desafio, de que forma se apresenta um projeto de um filme que pode não “dar certo”? Ou, como convencer um júri de que é possível realizar um filme que trata de um assunto tão subjetivo? Como transmitir à outra pessoa a relevância que o assunto tem para o próprio cineasta? Essas perguntas sempre irão pairar em torno de filmes desse gênero e as respostas continuarão não sendo óbvias.
Como não obtive sucesso em nenhum pedido de financiamento, resolvi iniciar as gravações por conta própria, com longos espaçamentos entre elas. No início de 2018, o projeto foi comissionado pelo Cana Futura, o que possibilitou uma retomada das filmagens e a finalização do filme em condições profissionais.
A seguir, apresento anotações feitas durante o processo de filmagem do documentário e as analiso com base nos autores trabalhados até aqui. As anotações mostram como algumas tiveram que ser alteradas durante a realização do trabalho.
Anotações e Reflexões
25/11/2016
“Pela primeira vez incluo minha família à frente da câmera em algum trabalho meu. Me senti mais à vontade do que imaginava. Achei curioso meu pai pedir para eu desligar a câmera para ele dizer “coisas que não eram boas”. Não filmei algumas situações, mas gravei o áudio, inclusive das minhas falas. Jogar na loteria os números da placa do caminhão.”
Relembrando esse primeiro dia de filmagem, o fato do meu pai pedir para eu não filmar algumas partes não me parece mais curioso, mas natural. Já que
a autoapresentação permite que o indivíduo revele mais ou menos de si mesmo, seja franco ou circunspecto, emotivo ou reservado, curioso ou distante, tudo de acordo com a maneira como a interação desenvolve-se, momento a momento. A apresentação do self é menos uma máscara que se adota do que um meio flexível de adaptação (NICHOLLS, 2016, p. 32).
Meu pai julgou o que podia ou não ser dito, ele definiu sua autoapresentação. Uma insistência em gravar algo que ele não queria seria uma forma de romper um compromisso ético que se firma (numa espécie de contrato invisível) com os participantes do filme.
Até hoje não joguei os números na loteria.
06/12/2016
“Fomos gravar na Rua Belém, no bairro da Agapema, em Jundiaí. Na casa que era dos meus avós, onde meu pai nasceu morou até se casar. Depois do casamento, meus pais construíram uma casinha nos fundos do terreno. Foi onde eu nasci e vivi até uns 10 anos de idade. Hoje meu tio Edvaldo mora na casa dos fundos e a da frente está fechada, praticamente abandonada. Ele nos ajudou em alguns momentos e disse que podemos contar com ele no que precisarmos.”
O telhado da casa caiu parcialmente, está um caos lá dentro. Procuramos nos móveis alguma foto ou documento do caminhão, não encontramos nada. Foi a primeira vez que entrei naquela casa desde que minha vó morreu, em 2003. Não fiquei triste nem feliz por ver tudo naquele estado. Talvez as coisas sejam assim.”
05/01/2017
“Primeira gravação com minha mãe, não rolou como tinha imaginado. Ela fica preocupada em falar bem e acaba não agindo naturalmente. Também gravei meu pai ligando na Gerdau[2] e pedindo o telefone de um cara que conhecia o comprador do caminhão.”
O comportamento de Bete, minha mãe, é compreensível. Uma vez que “aquele que filmamos tem uma ideia da coisa, mesmo que nunca tenha sido filmado. Ele representa para si, prepara-se de acordo com o que imagina ou acredita saber dela (filmagem)” (COMOLLI, 2008. p. 53). Evidentemente, não há problema nenhum nisso. Cada um que comporte-se da maneira como julgar mais adequada em uma filmagem. Não quis interferir nem induzir alguma fala dela.
06/01/2017
“Não existe diferença entre documentário e ficção. Fui com meu pai até a casa do cara do telefonema de ontem, ele não estava.
As estratégias de abordagem do filme precisam ser revistas. Não rola chegar gravando meu pai batendo de porta em porta. O plano sugerido é conversar previamente com as pessoas por telefone, explicar a proposta do trabalho, ouvir o que elas sabem a respeito do caminhão e, só então, agendar uma possível entrevista. Claro que a montagem vai procurar deixar tudo isso o mais natural possível.”
Existem dois pontos a serem considerados nas anotações desse dia. O primeiro é a afirmação sobre a inexistência de diferença entre documentário e ficção. Embora, grosso modo, eu continue concordando com ela, a discussão é um pouco mais complexa, e
a separação entre documentário e ficção […] depende do grau em que a história corresponde fundamentalmente a situações, acontecimentos e pessoas reais versus o grau em que ela é principalmente produto da invenção do cineasta. Sempre há um pouco de cada (NICHOLLS, 2016, p. 35).
Hoje, depois de ter o filme concluído, considero que Edmur e o Caminhão é “um documentário com desejo de ficção, e uma ficção com desejo de realidade”. (BERNARDET, 2005, p. 149).
O segundo ponto diz respeito às preocupações com a montagem ainda durante as filmagens. Essa é uma prática natural, pois a montagem não começa na ilha de edição. Escolhas de locações, figurinos, casting, decupagem técnica e diversos outros procedimentos podem ser considerados parte da montagem. A questão é o quanto essa antecipação pode trair as premissas de um documentário de busca. Comentando sobre a criação de 33, Kiko Goifman afirmou: “se eu posso e devo cortar partes, escolher trechos, por que não poderia inverter ordens?” (GOIFMAN apud BERNARDET, 2005, p. 147). Considerando essa liberdade em inverter a ordem dos acontecimentos, entendo que pensar na montagem ainda durante as filmagens não compromete o conceito de busca do filme. A realidade fílmica não está sendo distorcida, mas sim organizada de outra forma.
10/09/2017
“Uma das diárias mais proveitosas até agora. Fomos à casa dos fundos da Rua Belém gravar uma conversa entre meu pai e Edvaldo. Na cozinha, um papo bem informal. Eles relembraram histórias sobre o caminhão. O legal foi que o Edvaldo encontrou umas fotos antigas do caminhão.
Já começo a pensar num plano B, caso não encontremos o Chevrolet.”
Na época, ainda tinha a impressão de que achar ou não o caminhão poderia interferir no êxito do trabalho. Ao entender que a questão principal não era o caminhão em si, mas as memórias que a busca poderia trazer, percebi que “tudo no filme é vestígio, rastro do passado” (CURSINO; LINS, 2010, p. 93). O foco, então, voltou a ser as memórias em torno do caminhão, reforçando a subjetividade desse tipo de filme.
03/01/2018
“Mais de um ano de filmagem. Fomos à casa do Gilson “Girolo”. Ele é primo do meu pai e chegou a trabalhar com o Chevrolet. Cerca de 10 anos atrás, numa viagem ao Mato Grosso do Sul, ele disse ter visto o caminhão por lá. Se, de fato, o caminhão está com alguém que mora lá, vai ser difícil mesmo encontrá-lo. Essa conversa com o Girolo é uma maneira de amarrar tudo.”
04/01/2018
“Gravei meu pai vendo e comentando as fotos do caminhão que o Edvaldo achou. São as únicas fotos que temos. Acho que as gravações praticamente acabaram. Agora é começar a editar e ver que rumo o filme toma. Também não sei o quanto meu pai continua empolgado com a ideia. Se formos continuar nesse ritmo arrastado, isso não vai acabar nunca. Vou começar a montar e, se sentir falta de alguma coisa, é só fazer gravações pontuais.”
As fotografias que foram encontradas pelo Edvaldo são as únicas imagens que restaram do caminhão. O filme fala dele o tempo todo, mas ele nunca aparece. Nesse caso, “o uso da fotografia na narrativa dá vida à memória, nos convida a trabalhar no mesmo seio da palavra falada” (CURSINO; LINS, 2010, p. 93). As fotografias também funcionam como uma forma de compartilhar com o público a imagem daquilo que buscamos.
20/04/2018
“Saiu o resultado do CurtaDoc do Canal Futura e Edmur e o Caminhão foi um dos 20 selecionados. Foram 871 inscritos. Uma grande vitória. Agora vai ser possível continuar o filme e finalizá-lo com a devida estrutura.”
11/07/2018
“Hoje gravei uma entrevista longa com meu pai em sua oficina. Gostei do resultado, tanto das imagens quanto do som e conteúdo. O papo fluiu bem. Em alguns momentos, antes de responder, ele perguntava como eu queria que ele respondesse. Se fosse no início do processo do filme, acharia um pouco constrangedor esse tipo de situação, já não acho mais. Ele falou sobre como aprendeu a dirigir, algumas dificuldades da profissão, o começo do trabalho com o Chevrolet e coisas assim. Depois gravei ele fazendo alguns trabalhos.”
O ato de gravar meu pai trabalhando em sua oficina é o que Fernão Ramos chama de encenação-locação, um ato que “envolve ações preparadas especificamente para a câmera” (RAMOS, 2008, p. 42). Meu pai normalmente trabalha em sua oficina mas, ao pedir para ele desempenhar alguma tarefa para ser gravada, o quão natural foi essa ação? Não importa, dentro do filme ela existe e, portanto, é real.
22/07/2018
“Gravamos uma conversa nossa, na cozinha da casa dos meus pais. Teoricamente, essa deveria ter sido a primeira cena filmada. A vantagem de gravá-la por último é o fato de poder direcionar a conversa para algo mais próximo do que imagino que será o filme. Embora minha voz já tivesse sido gravada várias vezes, essa foi a primeira vez em que apareci no filme.”
O fato de eu me colocar diante da câmera consiste em produzir uma “mise-en-scène de si mesmo” (COMOLLI, 2008, p. 53), o que reforça o aspecto de autodireção dos documentários em primeira pessoa.
Nos dois meses seguintes me dediquei à edição e montagem do filme. Algumas breves imagens de cobertura – como meu pai manuseando uma lista telefônica – foram gravadas durante o processo de finalização, uma prática mais próxima da ficção do que do documentário, mas que nesse ponto já não fazia mais diferença.
A estreia de Edmur e o Caminhão em rede nacional aconteceu em novembro de 2018, quase uma década após a idealização do filme.
Considerações Finais
Enunciar as diferenças entre documentário e ficção não é uma das tarefas mais simples. Os limites entre os dois ficam ainda mais borrados ao se tratar de documentários que fogem ao estilo clássico das décadas de 1920 e 1930, é o caso dos documentários de busca e performáticos.
A autoetnografia presente nesses filmes não faz com que eles sejam mais ou menos verdadeiros, uma vez que “verdade” pode ser um conceito muito relativo, sujeito à nossas próprias interpretações e visões de mundo. Uma interpretação pode ser construída, assim como uma memória. Uma memória construída é tão legítima quanto uma memória vivenciada, ambas coexistem em nossa subjetividade.
No documentário em primeira pessoa a construção da memória acontece de forma mais recorrente, pois o tratamento criativo da realidade é feito através da maneira como o próprio realizador a interpreta. O documentário contemporâneo tende a embaralhar cada vez mais as noções de memória vivenciada e memória imaginado, e com isso as particularidades de ficção e realidade dissolvem-se cada vez.
Referências
BERNARDET, Jean-Claude. Documentários de busca: 33 e Passaporte Húngaro. In: MOURÃO, Dora Maria e LABAKI, Amir. (orgs.). O cinema do real. São Paulo-SP: Cosac Naify: 2005. p.142-156.
COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder: a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte-MG: Editora UFMG, 2008.
CURSINO, Adriana; LINS, Consuelo. O tempo do olhar: arquivo em documentários de observação e autobiográficos. Conexão – Comunicação e cultura. Caxias do Sul-RS, v. 9, n. 17, p. 87-99, jan/fev 2010.
LABAKI, Amir. Introdução ao documentário brasileiro. São Paulo-SP, Francis Editora: 2006.
LINS, Consuelo. A voz, o ensaio, o outro. In: Catálogo da Restrospectiva de Àgnes Varda. Rio de Janeiro-RJ, São Paulo-SP, Brasília-DF, CCBB Editora: 2006.
NICHOLLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas-SP, Papirus Editora: 2016.
RAMOS, Fernão Ramos. Mas afinal…o que é mesmo documentário? São Paulo-SP: Editora Senac São Paulo, 2008.
RUFFINELLI, Jorge. América Latina em 130 documentários. São Paulo-SP, É Realizações Editora: 2017.
Notas
[1] Disponível nas plataformas Futura Play, YouTube e Vimeo.
[2] A Gerdau foi a última empresa para qual meu pai trabalhou antes de vender o caminhão.