Ma: Representações do vazio na narrativa ocidental, a ghost story e suas referências orientais

artigos Edição 37

Ma: Representations of emptiness in the western narrative, the ghost story and its oriental references

FARINAZZO, Ezidras. Ma: Representações do vazio na narrativa ocidental, a ghost story e suas referências orientais. In: Aguarrás, vol. 8, n. 37. ISSN 1980-7767. São Paulo: Uva Limão, JAN/JUN 2021. Disponível em: <https://aguarras.com.br/ma/>. Acesso em: [current_date format=d/m/Y].

Resumo – Com o propósito de discorrer sobre o Ma “espaço vazio” e suas relações com a narrativa cinematográfica atual, este artigo propõe uma análise entre dois filmes relativamente contemporâneos sendo estes os respectivos “A Ghost Story” da produtora A24, dirigido por David Lowery em 2017 e “A Viagem de Chihiro”, produzida pelo Estúdio Ghibli e tendo como diretor Hayao Miyazaki em 2001. Ambos os filmes sendo de categorias diferentes possuem consigo e em suas narrativas preceitos narratológicos do Ma, trazidos para o cinema advindo das artes plásticas, arquitetura e demais variantes das expressões artísticas e culturais milenares do oriente. Visa-se com este artigo o entendimento do Ma nas novas narrativas ocidentais e também entender os conceitos da globalização que há por trás desses cruzamentos de cultura para que tenhamos narrativas contadas com estes conceitos orientais. Trazendo consigo reflexões sobre a importância deste novo conceito nas misturas cinematográficas contemporâneas e suas possibilidades e oportunidades quanto agente criador de sentidos e sentimentos para os espectadores.

Abstract – With the purpose of discussing the Ma and the empty space and its relations with the current cinematographic narrative, this article presents an analysis between the two films with consistency and their respective contents “A Ghost Story” of the producer A24, directed by David Lowery in 2017 and “Spirited Away”, presented by Studio Ghibli with director Hayao Miyazaki in 2001. Both films that see the same series contain their own narratives in 2001, both brought to the cinema with the coming of the plastic arts, architecture and other variants of the millennial artistic and cultural expressions of the East. It is aimed at the article about the understanding of the new western narratives and also about the precepts of globalization that exist behind crossings of culture so that we can have narratives told with these eastern concepts. It brings with its reflections on the gravity of this new concept in the contemporary cinematographic mixtures and its capacities and actions as an agent that creates senses and feelings for the spectators.

Palavras chaves: Espaço Vazio, Ma, Cultura, Cinema, Silêncio.

Keywords: Empty Space, Ma, Culture, Cinema, silence.

Introdução

Ma, uma palavra de significados múltiplos, em japonês escreve-se:Porém, suas variações abundantes se dão, como  (vazio + Ma) espaço (momento + Ma) =  tempo, de acordo com: (Okano, 2013-2014). No entanto seu entendimento é mais relativo que o esperado, não sendo apenas o “Entre Espaço”, “Espaço Vazio” ou o mero “Nada”. Formam consigo uma vasta gama de significações que são aplicáveis as mais variadas formas de ser e estar perante o espaço e o tempo. De uma cultura milenar que visa e cultiva os espaços de apreciação do vazio, sendo esses espaços, uma pausa na fala, uma pausa na apresentação ou até mesmo em um momento de puro e simples contemplar do cotidiano diário e de suas banalidades do acaso. Sendo assim, o conceito de Ma é mais fácil de ser vivido que simplesmente explicado. Porém, neste artigo ousaremos fazer um paralelo entre o oriente e sua visão narrativa com os novos experimentos ocidentais.

O Ma origina-se da ideia de um espaço vazio demarcado por quatro pilastras no qual poderia haver a descida e a consequente aparição do divino. O espaço seria, assim, o da disponibilidade de acontecer e, como toda possibilidade, o fato poderia concretizar-se ou não. (OKANO, 2014, p 151)

Contraditoriamente este espaço que fica no “entre, para o ocidente não faz um sentido completo, uma vez que no ocidentalmente a cultura constitui-se de forma oposta. Onde a reciprocidade é a base do senso comum. Uma conversa sem pausas ou com inúmeras interrupções se faz presente em várias culturas ocidentais. Uma música com poucas pausas ou quase nenhuma é contemplada de uma maneira única. E também peças cinematográficas com um compasso de tempo marcado pelos acontecimentos subsequentes e que freneticamente planejados são vivenciados um a um de forma abrupta e constante. Assim como afirma Okano (2013-2014, p. 162): “Desse modo, é possível estabelecer alguns diálogos entre o tema do nosso estudo e a contemporaneidade global na qual o Oriente e o Ocidente se encontram e promovem a interculturalidade”.

Figura 1. Shôrin-zu Byôbu (Biombo das Árvores de Pinheiro), de Tôhaku Hasegawa.

De forma relativamente nova à cultura, o Ma se deu como conhecida por volta de 1978, em uma exposição de arte fazendo com que seus conceitos fossem difundidos de forma sutil para países do oriente. O artista e arquiteto japonês Arata Isozaki começou sua jornada por Paris, batizada por Ma: Espace Temps du Japon (Festival Automne, 1978). Sendo assim, esta foi a entrada do Japão moderno que seria visto por outras expressões de sua cultura que não fossem as demais massificadas, enfadonhas e incrustradas nos conscientes e subconscientes dos ocidentais. Como vê-se na figura 1, as disposições das imagens no biombo são espaçadas com um grande espaço não ilustrado, dando margem ao espectador de imaginar e ter um espaço para seus pensamentos assim como uma área de respiro para o consumo da arte em si. Portanto também diferente da Gestalt que visa formar mais significação com os espaços vazios, transformando-os em espaço negativo, porém não vazio, onde o negativo pode ser uma nova forma de imagem.

Além disso, a exposição de 1978 trouxe, por um lado, o interesse dos ocidentais no tema e o consequente surgimento de pesquisadores sobre o assunto e, por outro, a consciência japonesa da necessidade de explicar o que é o Ma. Em razão disso, houve várias tentativas de verbalizar o que é o Ma por parte dos próprios japoneses, em universos distintos, como arquitetura, música, dança ou arte. (OKANO, 2013-2014, p. 153)

Não sendo um segredo da cultura milenar oriental, esses conceitos transcenderam suas lindas histórias e vivência para caírem nos gostos dos ocidentais. Que por trás de seus gostos transcrevem suas vontades em formas de vendas compulsórias e desenfreadas com inovações que não passam de desconhecidas para uma grande maioria de seu público de massa do ocidente. No entanto, não passando distante deste contexto o Ma está invadindo as obras de forma sutil e trazendo consigo um diferencial mercadológico e narratológico, importante para a diferenciação de mercado, público e gosto. As narrativas também visam lucros e o Ma tem seu percentual de ajuda nesta diferenciação estética aprimorada que será melhor destrinchada ao decorrer deste texto.

Neste mesmo contexto a globalização e facilidade de acesso às redes e novas mídias de consumo, dá-se o filme produzido pela aclamada produtora A24 por suas contínuas indicações ao Óscar e por prêmios em diversos festivais, o filme chamado “A Ghost Story”. Traduzido para o português como “Sombras da vida”. Foi lançado em 2017 (IMDB, 2017). Porém, com este conceito a A24 e seus demais filmes possuem um toque oriental ou uma forma peculiar de lidar com o tempo e espaço, assim como, “X Machina, Moonlight, Under the Skin e The Lobster”. A direção trazida por David Lowery no filme A Ghost Story traz consigo várias camadas de semelhança com A Viagem de Chihiro, tanto na construção do personagem principal chamado de C de A Ghost Story em relação ao Sem Rosto de A Viagem de Chihiro quando no uso e abuso do Ma para expressar todo o espaço tempo que não seria explicado de forma matemática como grandes nomes da física o fizeram, uma vez que as elipses de tempo são muito confusas em A Ghost Story, sendo um vai e vem de tempo e espaço que beira ao nonsense. Podendo com isso conter uma descentralização do espaço/tempo e levando consigo a possível realidade temporal vivenciada em um mundo real, sendo ambas as histórias autossustentáveis em seu próprio universo. Por fim, pretende-se identificar os aspectos que fazem do Ma uma novidade narratológica para o ocidente.

Espaço, tempo e o Ma

O espaço e o tempo são compreendidos de várias formas, sendo ela complexas ou simples, pode-se dizer sobre a efemeridade da vida transitando sobre ela, seguindo sempre em uma reta, às vezes depara-se contra a regra de se direcionar ao oposto caminho natural dos fatos se opondo e contrapondo nos planos da narrativa. Seus significados transcendem seu ser em uma compreensão lógica, que pode ser única de cada indivíduo independente de seu conhecimento prévio ou completamente ignorância sobre o assunto. De uma forma sub-humana o silêncio é incutido no amago do ser humano, como afirma Sontag (1987): “A arte no nosso tempo é ruidosa, com apelos ao silêncio”.

Einstein tinha uma forma contundente de se expressar quando o assunto era um de seus principais estudos o espaço e o tempo, porém com a morte de um de seus mais fieis amigos, ele se depara com uma das tristezas que só o tempo pode trazer, porém em sua carta para a família de Bosso Einstein Diz:

(…) Now he has again preceded me a little in parting from this strange world. This has no importance. For people like us who believe in physics, the separation between past, present and future has only the importance of an admittedly tenacious illusion.”[1] (CHRISTIE’S, 2017).

Sendo essa separação de passado presente e futuro uma forma única de vivência do Ma, que neste artigo é representado como o espaço entre as vivências e seus tempos determinados pelo avanço em linha reta sem retorno. Porém, o que isto tem a ver com os filmes A Ghost Story e A Viagem de Chihiro?

Ambos os filmes têm uma melancolia esclarecida pela perda e pelo tempo que é mostrada de forma disfórmica, pela forma fluida e paradoxalmente descontínua que a vida é representada. Podendo ser em ambientes surreais ou reais e fazendo consigo um simulacro da verdade cotidiana vivida por todos, todos os dias uma base para impregnar na narrativa sua veracidade diégetica. Esse simulacro evidencia a existência de uma comparação com do espectador e com a criação, assim como afirma Yung:

Às vezes é claro que um filme tem um impacto no comportamento baseado em paralelos tão precisos entre o filme e a vida real que não poderia ser mera coincidência. Na maioria das vezes, o fenômeno do imitador é relativamente inócuo. (YOUNG, 2014, p. 152)

Sendo assim, as formas que o vazio é regido no ocidente advém de formas aristotélicas de entendimento do ser, fazendo com que não seja possível nenhuma contradição do certo e errado, do possível e o impossível ocuparem um mesmo espaço. Posto isso, impossível o tudo e o nada andarem juntos de forma a formarem um novo entendimento sobre o que se vive. De acordo com Okano:

A lei aristotélica da não contradição traz em si a impossibilidade de uma proposição verdadeira ser falsa ou de uma proposição falsa ser verdadeira e, dessa forma, nenhuma proposição poderia estar nessas duas categorias ao mesmo tempo. (OKANO, 2013-2014)

Fazendo assim com que ideologias da física passem a ser de uma forma rasa muito parecidas com os conceitos orientais milenares do Ma e também auxiliem na transposição de entendimento e associação pessoal de cada espectador no momento de consumo da história. Porém, neste âmbito da física e mistérios, os filmes aqui comparados se permeiam e adentram nos sentidos, jogando com o tempo e o espaço de uma forma lúdica e moderna para os novos olhares que veem estes tipos de produção sem aviso prévio do que se trata por trás da criação. Claramente os conceitos são antigos, porém a cada nova pessoa que os vê pela primeira vez teremos algo novo, incluindo-se também todas as possíveis experiências do espectador com a narrativa e o uso do Ma que vão desde um simples desencanto com o tempo da narrativa como o absoluto e sinestésico sentimento de efemeridade/solidão que o Ma pode proporcionar.

Por fim, o tempo na narrativa é importantíssimo no uso do espaço e na passagem da experiência para o espectador. Fundamental para que o Ma possa ser materializado nas mídias de forma a ser ouvido e sentido de forma nova e única pelos espectadores que buscam por experiências novas e surpreendentes a cada sessão.

 

Subjetividade vazia, o nada demonstrado com o tudo

As narrativas clássicas do cinema vem sendo contrapostas a extremas mudanças da propriedade artística e contextual, uma vez que, está-se atingindo a beira da estagnação e impossibilidade criativa por meio de histórias inovadoras e exclusivas que ainda não foram contatas. Portanto, resta-se o reaproveitamento de histórias banais com novas formas de se mostrar o mesmo caminho assim como o uso do inutilizado por estes movimentos. Assim, a hibridização cultural trouxe um alento criativo para o ocidente pois com isso ganha-se mais tempo e conteúdo para se criar histórias supostamente únicas.

On Hayao Miyazaki I told Miyazaki I love the “gratuitous motion” in his films; instead of every movement being dictated by the story, sometimes people will just sit for a moment, or they will sigh, or look in a running stream, or do something extra, not to advance the story but only to give the sense of time and place and who they are. “We have a word for that in Japanese,” he said, “It’s called ma. Emptiness. It’s there intentionally. “Is that like the “pillow words” that separate phrases in Japanese poetry? “I don’t think it’s like the “pillow word.” He clapped his hands three or four times. “The time in between my clapping is ma. If you just have non-stop action with no breathing space at all, it’s just busyness, but if you take a moment, then the tension building in the film can grow into a wider dimension. If you just have constant tension at 80 degrees all the time you just get numb.[2] (EBERT, 2002)

Na cultura milenar budista o nada pode representar o tudo, para o cinema o espaço vazio pode ser muito significativo, tornando o nada em uma grande forma de “dessubjetivizar a existência e abrir novos postos de entendimento único de cada espectador os atingindo em massa, porém os afetando individualmente. Nos filmes da produtora A24 temos os momentos de contemplação entre as cenas tornando os filmes extensos e muito intensos de significados sensoriais, que por sua vez, fazem sentidos diferentes para cada espectador de acordo com sua faixa etária e também seu consumo de vida pessoal previamente experimentado através de experiências vividas. Destes filmes o caminho é turbulento para o entendimento de alguns espectadores, muitas vezes perdido por uma não doutrinação ocidental de entender os espaços de contemplação nas narrativas que precederam a introdução do Ma no cinema ocidental. Também, pela sua forma frenética em que a sociedade se instala impedindo a concentração ideal para o consumo destas histórias. Mesmo que o Japão seja um país muito populoso e economicamente muito influente o tempo para os japoneses não se mistura com suas vidas turbulentas, servindo-lhes de inspiração para suas obras e estilo de vida. Veja a seguir um exemplo de como o tempo na trama interfere no consumo da narrativa. E como a falta de ação pode levar a novos entendimentos do conceito que se quer passar com a ausência de, neste caso, atuação e diálogos. (YOUNG, 2014)

Figura 2 – Cena de Reflexão – A Ghost Story

Em A Ghost Story, pode-se notar que momentos de pura contemplação como em que a protagonista passa a escutar a música que seu ex-marido agora fantasma fez, trazendo consigo toda a admiração necessária, porém com uma carga dramática extraordinária. Neste momento pode-se escutar a música “I Get Overwelmed – Darck Rooms”. Enquanto simplesmente vemos sua mão se estender em um ato banal, porém notamos que ele se encontra a beira de um toque com ela, mas essa aproximação não acontece. (A GHOST STORY, 2017, t. 40:40)

 

Pode-se notar que para Myazaki, não se trata apenas dos espaços vazios mas sim um momento de reflexão do personagem que excede a própria história, fazendo com que o Ma seja por si só uma vertente de transferência de pensamentos que variarão de acordo com o espectador dentro de um espaço e de um tempo dentro da fábula, assim como afirma Young (2014): “Referenciar as partes de transferência do cinema para a vida real”.

Figura 3 – Chihiro observando a passagem que a levara a sua aventura.

Já nesta cena de A Viagem de Chihiro, podemos ver assim com várias cenas extras um mero pausar da trama para contemplarmos algo que não propriamente está sendo dito, porém vivido pelos personagens. Um traço de Myazaki, que por sua vez, é muito contextualizado com os conceitos de Ma e completamente envolventes. Uma vez que entendido estes momentos nos retiram da trama para refletirmos sobre nós mesmos e nossas vidas ao mesmo instante em que nada é passado de uma forma tão consistente”. (SUZUKI, 2001)

Desta forma podemos entender diretamente as referências usadas para a direção do filme A Ghost Story (IMDB, 2017), e saber o que David Lowery mais gostava no personagem Sem rosto, por mais que em suma maioria de suas entrevista ele tentasse falar de forma cômica de suas visões, a melancolia e a tristeza tomavam conta de seus takes, como afirma para o site de Cinema IMDB em 2017:

We looked at that phantom in Spirited Away as a point of reference for our ghost. Obviously, that spirit takes on a much different form but for much of the movie it’s a shrouded figure with an impassive face, but there’s so much emotion and complexity in that visage. It also has a charm, a naivety, a whimsy. I love that whimsy and I wanted our movie to capture that. I wanted it to be playful in the same way as [director] Hayao Myazaki’s films are playful.[3] (LOWERY, 2017)

Essa emoção que David Lowery reafirma perante a “não ação” do personagem de Myazaki que reflete diretamente na forma de se contar a história, deixando a narrativa interessantemente diferente das narrativas comuns já banalizadas pelo excesso. Porém, mesmo sendo muito influenciado pelo silêncio e diretamente pelo Ma que Miazaky faz questão de passar em todos os seus belíssimos filmes, David Lowery também se depara com uma ponta de ter que lidar com as inconsistências de takes longos demais, ou uma falta de diálogo que é claramente suprida pelo emocional de seus espectadores que decaem sobre lágrimas ou simplesmente refletem lamuriosos suspiros de um tédio sem fim. Contudo, o Ma deve ser algo com base na experimentação de cada um, trazendo consigo a paciência que o ocidente não detém de primeiro momento, para que aí sim, a história possa ser consumida de forma mais honesta.

Miazaky utiliza em A Viagem de Chihiro cenas mais curtas que mesmo que se prolonguem por instantes não aparentam tão longos e desnecessários como os de A Ghost Story. Porém, os desejos de cada diretor perante a construção da sua narrativa são únicos e artesanais ainda mais quando o diretor é o roteirista da história e se permite errar para tentar acertar. O erro no uso exagerado do Ma ou qualquer forma de postergar os acontecimentos nas histórias cinematográficas, ficará sempre escondido em uma cena em que alguns compreenderão e outros não, uma vez que, os termos do Ma são muito subjetivos para que exista uma forma fixa de reprodução para essas histórias, podendo variar sua presença em ser ou não ser ou estar ou não estar.

 

 

Silêncio na narrativa e na construção dos personagens

O silêncio no cinema juntamente com a ausência de diálogos pode trazer o conceito da Ma para o cinema, assim como os longos takes do filme A Ghost Story, também podemos ter takes fora de contexto como a mera observação da vida passando pela janela do trem, como em A Viagem de Chihiro. Nenhum diálogo, nada além do silêncio e a melancolia que estes momentos trazem para os ocidentais como um todo, essa ausência de preenchimento se molda a falta ocidental para um diálogo mais calmo e manso com a trama. Trazendo à tona novos formatos de narrativa e consumo das mesmas. Para se contar uma história ou até mesmo passar efeitos sinestésicos inatingíveis de outras formas, como, a solidão, a sensação de vida ou até mesmo a observação do tempo. Se passando de uma forma verdadeira e se caracterizando em um gosto, cheiro, cor e som, para aqueles contextos visuais e sensoriais fílmicos para que se propõe o Ma. “O silêncio continua a ser, de modo inelutável, uma forma de discurso (em muitos exemplos uma forma de protesto ou acusação) de um elemento em um diálogo”. (SONTAG, 1987, p. 18)

A linguagem é experimentada não meramente como algo compartilhado, mas como uma coisa corrompida, vergada pelo peso da acumulação histórica. Assim, para cada artista que a conhece, a criação de uma obra significa enfrentar dois domínios ·potencialmente antagônicos de significado e suas relações:- Um deles é seu próprio significado (ou ausência de); o outro é o conjunto de significados de segunda ordem, os quais, ao mesmo tempo que estendem sua própria linguagem, a oneram, a comprometem e a adulteram. O artista acaba por escolher entre duas alterativas inerentemente limitantes, forçado a tomar uma posição que é ou servil, ou insolente. Ou ele adula e satisfaz seu público, oferecendo-lhe o que este já sabe, ou comete uma agressão contra seu público, dando-lhe o que este não quer. (SONTAG, 1987, p. 22)

Figura 4 – A Viagem de Chihiro – Vista do Trem

Com o uso do Ma a vida é retratada de uma forma mais verossímil com a realidade vivida por pessoas que observam o seu redor e contemplam ações geradas pelo instante exato do presente e que se transforma em momentos únicos para cada passo que o se vive. Tornando o presente algo verdadeiramente inesperado e vivido de forma subjetiva de cada um, independendo do sentimento. Assim como, na figura 4 pode-se ver que em A Viagem de Chihiro, Myazaki expressa a passagem do tempo da viagem de Chihiro no trem com cenas longas de mera reflexão da personagem e vistas da paisagem, a ausência de ação diz por si só a controvérsia narrativa mais incrível e incomum que o cinema tem o prazer de se apropriar, onde o silêncio causado pelo Ma ou ausência de algo que aqui é o diálogo, transfere ao espectador uma experiência narrativa única e muito diversificada. Assim como afirma Okano (2013-2014, p. 150): “A arquitetura ontológica construída por Aristóteles admitia apenas duas possibilidades – ser ou não ser”. Nos restando assim a forma de contestar o próprio pensador com uma terceira opção já supostamente negada por ele. O Ma vem, se constrói e se refaz da contraditoriedade absoluta de seu abstrato entendimento.

O silêncio também interfere na forma de se contar, uma vez que os personagens “C” e “Sem Rosto” são uma manifestação cultural de seus respectivos países, porém não falam com palavras, mas despejam em ações ou não ações seus sentimentos. Uma vez que a ausência de movimento é forma e movimento. Seu silêncio por fim, torna algo maior na trama fazendo com que o texto seja passado de formas mais subjetivas, porém sem ruídos maiores que deterioram o entendimento da narrativa como um todo, mesmo sendo a ausência de algo isso não significa a ausência de propósito.

Nas figuras 5 e 6, vê-se que os fantasmas possuem uma estruturação em seu design incrivelmente simples, porém muito apoiadora para a imaginação do espectador criar suas próprias interpretações, uma vez que, em ambos os personagens a falta de um “Eu” é evidente. Tira do ator o poder de informar de forma habitual e clara as vontades, anseios e desejos de seus personagens, que se expressam através de uma força exterior, que necessitam do silêncio e outros aparatos diegéticos ou não, como, a música interna da trama, cores, fotografia para comunicar-se com o exterior, que por sua vez também demanda de necessidades especiais para imersão em uma narrativa tão peculiar.

Figura 5 – A Ghost Story – Personagem C
Figura 6 – A Viagem de Chiriro – Personagem Sem Rosto

(…) the content of the older media could simply be poured into the new one. Since the electronic version justifies itself by granting access to the other media, it wants to be transparent… so that the viewer stands in the same relationship to the content as she would if she were confronting the original medium. (Pearson & N., 2015, p. 58)[4]

Por fim, os personagens construídos para o silêncio e o espaço entre duas formas de ser, trazem consigo uma carga emocional que é partilhada com seus espectadores no consumo da narrativa, que por sua vez indefere da mídia em que se é exibida, uma vez que falamos de um público que se moderniza a cada dia mais. De acordo com o avanço da tecnologia e de seus anseios por novas formas de experimentar os efeitos do cinema o MA poderá se adaptar as novas formas de consumo, sendo elas interativas ou não.

 

Conclusão

“O silêncio mantém as coisas abertas”. (SONTAG, 1987, p. 27)

Sendo assim, o filme da produtora A24 A Ghost Story é de certa forma, um realinhamento paradoxalmente incorporado da cultura milenar japonesa no ocidente. Contendo de forma expressiva a globalização em seu interior, as nuances de sua produção com o sentido do vazio fazem com que essa mistura seja possível e muito bem-vinda, uma vez que todo discurso narratológico tem um tempo determinado e finito de produção para ser explorado. Dando, de certo modo, uma sobrevida criativa para as novas formas de se consumir essas histórias. Uma vez que, de acordo com (IMDB, 2017) o filme A Ghost Story lucrou 50% de seus gastos estimados em aproximadamente dois meses. Não é algo muito expressivo perto das grandes bilheterias, porém para um público de nicho este filme se pagou de uma forma rápida e sustentável. Comprovando também que seus lucros exponenciais fizeram que um filme de nicho atingisse uma grande parcela de seu público.

Uma visão bem construída de uma versão do Ma que se tem conhecimento de milênios e uma fruição artística e estética conhecida por diversos de seus diretores. Suas narrativas são como os novos experimentos, que de experimentos só se tem o nome. Pois as cargas dramáticas sobre os estados de vazio se esvaem por completo quando se trata de criação propriamente dita.  Assim como, nos filmes de X Machina, The Lobster, Unther the Skin e A Ghost Story pode-se notar que o silêncio e os espaços vazios se encontram, ou se cruzam com momentos de contemplação ou simplesmente nos momentos de ação, porém não há novidade em inovação narratológico, pois os efeitos do Ma já existem a séculos e não são novidade pura para todos.

O “silêncio” nunca deixa de implicar seu oposto e depender de sua presença: assim como não pode existir “em cima” sem “embaixo” ou “esquerda” sem “direita”, é necessário reconhecer um meio circundante de som e linguagem para se admitir o silêncio. (SONTAG, 1987, p. 18)

E mesmo que aquele bilhete do fantasma de A Ghost Story fosse um suspiro de amor de sua amada, nunca saberemos. Ainda assim, temos o tempo como a cruzada final. No Ma, a supressão temporal do silêncio, o espaço que se acaba e se recompõe da tentativa de se absorver de um amor já supostamente perdido no cosmos de uma falta de temporização póstuma e incontrolável. O desejo de ser livre por estar preso no amor que já não se lembra mais ao certo que amor era. O Ma pode se opor a melancolia, porém se traduz de forma contextualizada, o Ma é tudo e nada sem perder um minuto de sentido pleno da hipótese de simplesmente poder ser. Subjetivo e concreto. O Ma no ocidente se transcreve como uma doce melancolia programada que visa sair das visões clássicas para cair no efêmero e inconsistente nada entre frames” que faz da trama do tempo seu papel narrativo.

Referências

A GHOST STORY Direção: David Lowery. Produção: Adam Donaghey; Toby Halbrooks e James Johnston M. Intérpretes: Casey Affleck e Rooney Mara. [S.l.]: A24. 2017.

A VIAGEM DE CHIHIROViagem de Chihiro. Direção: Hayao Miyazaki. Produção: Toshio Suzuki. [S.l.]: Estudio Ghibli. 2001.

A24. A Ghost Story. aghost.store, 2017. Disponivel em: <https://aghost.store/shop/welcome>. Acesso em: 03 Janeiro 2019.

CHENG, F. Empty and Full the Language of Chinise Paiting. 1º. ed. Boston: Shambhala, 1994.

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DUARTE, R. Cinema & Comunicação. São Paulo : Autêntica, 2017.

EBERT, R. Roger Ebert. www.rogerebert.com, 2002. Disponivel em: <https://www.rogerebert.com/interviews/hayao-miyazaki-interview>. Acesso em: 05 Janeiro 2019.

FESTIVAL AUTOMNE. Festival Automne. www.festival-automne.com, 1978. Disponivel em: <https://www.festival-automne.com/edition-1978/arata-isozaki-exposition-espacetemps-japon>. Acesso em: 23 Janeiro 2019.

IMDB. IMDB. www.imdb.com, 2017. Disponivel em: <https://www.imdb.com/title/tt6265828/>. Acesso em: 22 Dezembro 2018.

LOWERY, D. Ghost Story-Influences. www.imdb.com, 2017. Disponivel em: <https://www.imdb.com/imdbpicks/ghost-story-influences/ls020726890/mediaviewer/rm2828972032>. Acesso em: 24 Janeiro 2019.

OKANO, M. Ma – a estética do “Entre”. Revista USP, São Paulo, n. 5ª, p. 150-164, Dezembro/Janeiro/fevereiro 2013-2014. ISSN 100.

PEARSON, R.; N., A. S. Storytelling in the Media Convergence Age Exploring Screen Narratives. 1ª. ed. Londres: Palgrave Macmillan, 2015.

SONTAG, S. Styles of Rafical Will. São Paulo: Schwarcz LTDA, 1987.

WILLIAMS, R. Manual de Animação. In: WILLIAMS, R. Manual de Animação. São Paulo: Senac, 2016.

YOUNG, S. D. A Psicologia vai ao Cinema. In: YOUNG, S. D. A Psicologia vai ao Cinema. São Paulo: Cultrix LTDA., 2014. p. 256.

Notas

[1] … Agora ele novamente me precedeu um pouco na separação deste mundo estranho. Isso não tem importância. Para pessoas como nós que acreditam na física, a separação entre passado, presente e futuro tem apenas a importância de uma ilusão assumidamente tenaz. (Trad. Autor)

[2] No Hayao Miyazaki, eu disse a Miyazaki que amo o “movimento gratuito” em seus filmes; em vez de cada movimento ser ditado pela história, às vezes as pessoas apenas se sentam por um momento, ou suspiram, ou olham em uma corrente, ou fazem algo extra, não para avançar a história, mas apenas para dar a noção do tempo e lugar e quem eles são. “Temos uma palavra para isso em japonês”, ele disse, “chama-se ma. Vazio. Está lá intencionalmente. “É como as “palavras de travesseiro” que separam frases na poesia japonesa? “Eu não acho que é como a palavra” travesseiro “. Ele bateu palmas três ou quatro vezes.” O tempo entre meus aplausos é ma. Se você tem apenas uma ação sem parar sem espaço para respirar, é apenas ocupação, mas se você demorar um pouco, então a construção de tensão no filme pode crescer em uma dimensão mais ampla. Se você tiver uma tensão constante de 80 graus o tempo todo fica entorpecido. (Trad. Autor)

[3] Nós olhamos para esse fantasma em Spirited Away como um ponto de referência para o nosso fantasma. Obviamente, esse espírito assume uma forma muito diferente, mas para grande parte do filme é uma figura encoberta com um rosto impassível, mas há tanta emoção e complexidade também tem um charme, uma ingenuidade, um capricho. Eu adoro esse capricho e queria que o nosso filme captasse isso. Eu queria que fosse brincalhão da mesma forma que os filmes do diretor Hayao Myazaki são divertidos.  (Trad. Autor)

[4] O conteúdo da mídia mais antiga poderia ser simplesmente colocado no novo. Uma vez que a versão eletrônica se justifica pela concessão de acesso às outras mídias, ela quer ser transparente … de modo que o espectador mantenha a mesma relação com o conteúdo que ela se estivesse enfrentando o meio original. (PEARSON e N., 2015, p. 58) (Trad. Autor)

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