Ensaio sobre a Catarse no Pós-Dramático

Edição 38 ensaios

Essay on Catharsis in the Postdramatic

PERCINO, Rafael. Ensaio sobre a Catarse no Pós-Dramático. In: Aguarrás, vol. 8, n. 38. ISSN 1980-7767. São Paulo: Uva Limão, JUL/DEZ 2021. Disponível em: <https://aguarras.com.br/a-pintura-como-acao-ecologica/>. Acesso em: [current_date format=d/m/Y].

Resumo: Este ensaio busca refletir sobre o lugar específico do fenômeno catártico no teatro contemporâneo, procurando pensar em definições transitórias e expandidas destes elementos formadores da poética cênica, suas acepções por diferentes autores assim como a disputa histórica e cultural que gerou entendimentos plurais entre os elementos da Poética de Aristóteles. Ao contextualizar os estudos sobre a catarse e refletir sobre o pós-dramático é possível construir pontes ressignificantes entre o presente e aquilo que achávamos já ultrapassado.

Palavras-Chave: Catarse. Teoria do Drama. Teatro pós-dramático. Teatro Contemporâneo. Performatividade.

Abstract: This essay seeks to elaborate the specifics of the cathartic phenomenon in contemporary theater, trying to remodel transitionary and expansive definitions for these elements that form the theatrical poetics. In this regard, the comprehension of different authors as well as the historical and cultural disputes must be considered, in a way that they generated plural understandings of Aristotle’s poetics. By contextualizing the studies about catharsis and reflecting about the post dramatic age it is possible to form insightful connections between the present and that which we thought was obsolete.

Key words: Catharsis. Drama Theory. Post Dramatic Theater. Contemporary Theater. Performativity.

 

Catarse no Tempo do Pós-Dramático

As contínuas e recentes mudanças presentes no teatro contemporâneo vêm propondo a formação de uma nova estética da encenação. Lehmann (2011) chamará este emergente movimento teatral de “Pós-dramático”, em contraponto à comum nomeação “Pós-moderno”, que diversos autores e estudiosos adotaram até então. Dentre as inovadoras características dessa nova estética teatral, Lehmann (2011) pontua que o teatro se dissocia do drama, da fábula e da obrigação de se contar uma história.

Este novo teatro se encontraria aquém do território dramático, fortalecendo os múltiplos elementos da encenação, como a cenografia, a iluminação, a caracterização etc. Não obstante, esta forma teatral também buscaria a valorização das experiências e situações, ao invés das ações e linearidade da trama. Pretende-se neste ensaio refletir sobre a situação de um dos pontos fundamentais para a Tragédia Grega, a catarse, em relação ao movimento Pós-Dramático, aqui entendido como fazer teatral contemporâneo, no que tange a expectação e apreciação do espetáculo cênico. Em uma forma teatral que se distancia da fábula e tece um tipo singular de experiência estética, existirá também a superação do caráter expiador da tragédia teatral clássica? É possível que a catarse se manifeste num ambiente de inovações conceituais como o pós-dramático? E, mais além, seria a catarse uma questão ainda relevante na contemporaneidade?

Conceituações do Pós – Perspectivas norteadoras

Para um melhor entendimento das questões relativas ao fazer teatral contemporâneo e ao tipo de arte desenvolvida neste contexto histórico e recorte estético, faz-se necessário, antes de tudo, pontuar as características e controvérsias que marcam a estética emergente denominada Pós-dramática. Em sua obra Teatro Pós-Dramático, Lehmann (2011) cataloga e contextualiza historicamente as evoluções artísticas que propiciaram e culminaram no desenvolvimento deste novo fazer teatral. No Brasil, Fernandes (2013) organiza O Pós-Dramático, onde não somente comenta sobre a obra de Lehmann, mas também observa como o fenômeno ocorre na cena do teatro brasileiro contemporâneo. Algumas características formais levantadas pelos dois autores valem a pena serem revisitadas, no intuito de identificar pistas e elementos que apontem para a relevância do fenômeno catártico no teatro contemporâneo no que condiz à experiência estética no contato com a obra.

Inicialmente é possível pontuar a questão textual como a principal diferença entre uma linha de teatro dramático e um denominado pós-dramático. O Drama pressupõe uma fábula, um conflito, uma sequência de ações para que se realize; e, tradicionalmente, é o texto teatral que lhe oferece tal suporte. Logo, para um teatro se dizer pós-dramático, ele teria que estar distante dessa relação, ou problematizá-la de alguma forma. De maneira a pensar a relação teatral como distanciada do texto ou da história, vemos que há uma valorização dos meios da encenação nos elementos pós-dramáticos, como o corpo do ator e da atriz, a iluminação, o cenário etc. Fernandes (2013, p.17) irá resumir que “[…] é apenas quando os meios teatrais se colocam no mesmo nível do texto, ou podem ser concebidos sem o texto, que se pode falar em teatro pós- dramático”. A autora demonstra como os processos teatrais começam a ser realizados de maneira mais independente do texto teatral, com adaptações, ou mesmo utilizando o texto apenas como inspiração para processos que pouco se assemelham à obra que lhes deu origem. No contexto do Brasil, podemos citar peças como Antígona Recortada (2013), da Cia. Bartolomeu de Depoimentos, Odisséia (2018) da Cia Hiato ou Medea Mina Jeje (2018) de Juliana Monteiro e Kenan Bernardes como alguns exemplos de peças que utilizam textos clássicos como inspiração para seus processos teatrais, não podendo ser observadas como leituras tradicionais, mas apenas sob uma perspectiva libertária do estritamente dramático. Não obstante, é necessário pontuar que esta característica “antitextual” do pós-dramático não universaliza o movimento estético, sendo um elemento variável, que ocorre em menor ou maior instância dependendo da montagem.

Faz-se necessário pensar, portanto, o termo pós dramático não apenas como caráter formal, mas também contextualmente estético, uma vez que sua estrutura é alicerçada na experimentação de linguagens e, nas palavras de Carvalho (LEHMANN, 2011, p.7) na “negação estética dos padrões de percepção dominantes na sociedade midiática.”. Entende-se com isso que ouve um rompimento com o tipo de experiência teatral pautado na espetacularização da vida e em moldes psicológicos pré-concebidos, levando não apenas à contestação do texto teatral, mas também o tipo de linguagem esperada e utilizada. As experimentações iniciadas no início do séc XX com as vanguardas artísticas já apontavam para quebras formais nos campos de pesquisas estéticas, mas é a partir dos anos 60 que o hibridismo de linguagens passa a ser fator recorrente nas montagens teatrais. Artes plásticas, música, performance, dança e as mais diversas manifestações artísticas tomam os palcos e dão forma a montagens teatrais fora dos circuitos comerciais convencionais:

Rejeitam a totalização, e cujo traço mais evidente talvez seja a frequência com que se situam em territórios bastardos, miscigenados de artes plásticas, música, dança, cinema […], além da opção por processos descentrados, avessos à ascendência do drama […] (FERNANDES, 2013, p.12)

Desta forma o hibridismo se consolida como uma tendência das montagens ditas pós-dramáticas, que partem do acontecimento teatral para explorar outros territórios e linguagens artísticas, e com isso ressignificando não apenas o fazer teatral, mas as relações formadas a partir e por esse acontecimento. Esse interesse crescente na “experimentação” por meio da exploração de diferentes metodologias de processo e linguagens múltiplas da cena acaba por distanciar questões de interpretação realista, e aproximar os artistas de interesses múltiplos. Neste sentido, Lehmann (2011, p.75) analisa o processo de re-teatralização e emancipação cênica do texto dramático a partir do começo do séc XX, período marcado pela ascensão de uma arte cinematográfica concentrada em uma representação realista do mundo. Se, por um lado, o teatro volta-se às questões técnicas e abandona a interpretação realista, essa crescente perda de interesse pode também ser observada nas Artes Plásticas, já desde o início do século, com a ascensão das vanguardas artísticas e do Modernismo, buscando perspectivas individuais ou coletivas de representação artística. No teatro, a vertente do Teatro Épico se fortalece com o interesse pelas questões coletivas e sociais, em detrimento das questões dramáticas e burguesas tradicionais. As peças já não tentam representar uma realidade, mas relatá-la e refletir sobre ela. O fenômeno do distanciamento e utilização do teatro para pensar a realidade social faz com que Lehmann (2011) considere Brecht como precursor do teatro pós-dramático, mas ainda não considera seu teatro como tal, por ele conservar a fábula como geradora do acontecimento teatral.

Ainda pensando num formalismo estruturalista das características questionadas pelo pós-dramático podemos denotar a linearidade de ações, sequência e os conflitos do drama como divergentes da concepção de um teatro dramático. O núcleo logos de uma peça dramática sustenta-se e depende da sequência de ações das personagens, da motivação do conflito e da razão dos acontecimentos. Ball (2011), em sua obra Para Trás e Para Frente, ressalta a importância do entendimento da sequência das ações dramáticas para uma obra teatral. Ele resume:

Um evento sem um segundo evento a ele relacionado, isto é, sem efeito, sem resultado, não passa de um texto inadequado ou, mais provavelmente, de uma leitura inadequada do texto teatral. Na vida real ou no palco, eventos não-relacionados são irrelevantes. Sem considerar o que ocorre na vida comum, é difícil tornar uma irrelevância teatralmente viável. […]

As ações são os tijolos fundamentais na construção de uma peça. (BALL, 2011, p. 25)

Na obra, o autor ainda afirma que a peça teatral pode ser lida de trás para frente, encontrando-se todas as ações que geraram um determinado acontecimento, tornando a obra dramática perfeitamente cronológica. Uma estrutura dramática tradicional se sustentaria nesse sequenciamento das ações, em que todos os eventos seriam explicados por um acontecimento anterior que, por sua vez, gera uma reação, em continuidade até o desfecho.

Lehmann (2011) observa nas vanguardas artísticas no início do séc. XX, passando pelo futurismo, dadaísmo e surrealismo, o início da desconstrução da linearidade cronológica das peças, com espetáculos que não seguem mais uma sequência de ações, mas utilizam-se de outras lógicas para construir seu fazer teatral. O autor cita Maeterlinck (1987, p. 99-100) “A peça de teatro deve ser antes de tudo um poema” (apud LEHMANN, 2011, p.94) já aqui imaginando os possíveis modos de operação divergentes de uma lógica racional/cronológica de sequenciamento da peça teatral e então conclui:

Nessas teses, renuncia-se a toda a estrutura de tensão, drama, ação e imitação. Como atesta a expressão “drama estático”, é abandonada a ideia clássica do tempo linear e progressivo em favor de um “tempo-imagem” bidimensional, de um tempo-espaço. (LEHMANN, 2011, p. 95)

No decorrer do séc XX, autores como Heiner Müller, Samuel Becket e Sarah Kane irão se aprofundar na exploração dos pontos norteadores de significado de suas peças, direcionando seus processos teatrais para criações relativas ao corpo, à linguagem, à condição social, à liberdade, demonstrando os diversos interesses na construção de uma lógica de pensamento estético que guia o processo teatral. Com as mudanças observadas ao longo do século, é possível chegar ao entendimento de uma lógica expandida do sequenciamento de uma peça teatral, que agora não se limita às ações cronológicas dos personagens, à ação e aos eventos, mas abrange uma variedade de interesses e temas, em sua maioria não relacionados ao texto dramático, mas às questões pessoais e coletivas.

Passemos então a considerar como a constante exploração de novas estruturas formais e os interesses dos artistas da cena impactam em mudanças na produção teatral do séc. XX, tendo elementos fundantes de um fazer teatral conhecido até então sendo reconsiderados: o texto dramático deixa de ser visto como fonte primária da encenação teatral, o hibridismo de linguagens substitui o modo formal, midiático e comercial das peças assim como o sequenciamento lógico das produções é repensado pela estética pós dramática emergente. Deste modo, a nova configuração dos elementos que costumavam formar um tipo específico de teatro se estabelece como uma definição de teatro pós-dramático. Essa não seria uma relação de superação ou exaustão das metodologias tradicionais de processo do teatro dramático, mas sim uma exploração de novos denominadores e possíveis trajetórias para o fazer dos interesses artísticos nesse contexto histórico e recorte cultural. É sempre importante ressaltar a pluralidade dos grupos e montagens da cena contemporânea, com espetáculos, performances e instalações que variam imensamente entre si. É sempre arriscado tecer comparações em um universo de obras tão distintas, visto que sempre existirão exceções e diferentes perspectivas sobre aquilo que se faz. Embora seja possível fazer uma análise dos principais pontos que divergem da tradição dramática, nenhum deles é unânime, ocorrendo em diversos graus em cada obra e continuando em constante exploração por parte dos criadores da cena. Isso se dá, justamente, pela informalidade daquilo que se considera pós-dramático; sendo um fenômeno observado pela prática estabelecida e não um manifesto pensado a priori.

Tendo agora passado por essa definição provisória daquilo que pode ser entendido por “pós-dramático”, passemos ao problema da catarse.

Catarse, um entendimento da antiguidade

Em Arte Poética, Aristóteles usa o termo kátharsis para designar a ação de expurgar os maus sentimentos, que os torna puros e admiráveis através da tragédia, gênero clássico teatral. Em sua acepção:

A tragédia é a imitação de uma acção elevada e completa, dotada de extensão, numa linguagem embelezada por formas diferentes em cada uma das suas partes, que se serve da acção e não da narração e que, por meio da compaixão (eleos) e do temor (phobos), provoca a purificação (kátharsis) de tais paixões. (ARISTÓTELES, 2008, p.12).

Como médico e estudioso do corpo humano e da sociedade, Aristóteles acreditava que a tragédia só se concretiza enquanto arte quando o público expulsa suas dores e encontra paz interior, após a apresentação. Ou seja, a catarse ocorreria numa conexão profunda do ser humano e da arte teatral, onde ele poderia ver-se retratado e entenderia sua própria dor existencial. Através do sofrimento e da expiação dos males que o afetassem, ele encontraria a purificação e paz, entrando em um equilíbrio espiritual. Seria nesse momento que a experiência estética se transformaria em experiência intersubjetiva. De acordo com Jauss (apud SIMÕES, 2010) “[…] designa-se por katharsis aquele prazer dos afetos provocados pelo discurso ou pela poesia, capaz de conduzir o ouvinte e o espectador tanto à transformação de suas convicções, quanto à liberação de sua psique.” O autor chega a citar que Aristóteles receitava ir ao teatro como terapia para os males da mente e do coração.

Conflitos Aristotélicos

A proposição aristotélica sobre a experiência catártica constituiu um constante campo de conflitos para seus estudiosos, que desde a Renascença até a contemporaneidade nutrem interesse e tecem diferentes perspectivas a respeito do texto de Aristóteles. Como afirma Bornheim (1994), existe toda uma história das interpretações elaboradas sobre a Poética, no que diz respeito a sua estrutura, sentido e função. O autor contextualiza o entendimento histórico e cultural da Poética, que passou por um milênio de esquecimento durante a Idade Média, onde a produção teatral foi única e rica, mas foge das proposições trazidas por Aristóteles. Foi apenas durante a Renascença que o texto se tornou uma referência universal para a produção teatral europeia, mas não há uma reflexão a respeito do autor da antiguidade. Bornheim (1994) nos aponta como a Poética se impõe de modo dogmático, como autoridade insuspeita. Esse autoritarismo e monopólio das questões teatrais perdurará até o séc. XVIII, e apenas com autores como Young, Hume, Wickelmann e Herder seria possível a abertura de novos horizontes, em um teatro que se aproximaria de questões da literatura e se distanciaria do cânone aristotélico. A crescente tomada de consciência histórica do séc. XIX dá novos ares ao estudo da Poética, tendo seu ápice em dois novos autores, Nietzsche e Wilamowitz-Moellendorff. Entre os dois, Nietzsche (1955, p.580) é categórico ao analisar os estudos teóricos de Aristóteles: “O desejo de ter uma referência segura na Estética induziu à adoração de Aristóteles; creio que aos poucos deixa-se mostrar que ele nada entende de arte, que nós admiramos nele apenas o eco das inteligentes conversas dos atenienses” (apud BORNHEIN, 1994, p.64). Nietzsche critica duramente o ponto de vista aristotélico a respeito do objetivo da tragédia como catártico, purgação do temor e piedade, sentimentos que o autor considera “deprimentes”. A polêmica que Nietzsche levanta gera uma reflexão até então deixada de lado pelos teóricos do teatro, incluindo Aristóteles, a pergunta pelo sentido do fenômeno trágico. E o que se torna possível mapear é a constante transformação histórica do sentido da tragédia antiga, que se adapta às realidades sócio-culturais de cada época. Pela perspectiva da teoria teatral, o problema permanece o mesmo: qual seria o sentido primeiro da catarse, ainda que irreproduzível? Tal questionamento se reflete na contemporaneidade, conforme entendimento de Bornheim:

A origem da tragédia não poderia apresentar caráter literário, mesmo porque a literatura não encontra em si mesma sua origem. Já se pressentem as diretivas maiores do teatro contemporâneo: teatro condicionado pela literatura ou espetáculo absoluto? Devem predominar os parâmetros mais tradicionais ainda que renovados pelas modernas técnicas de encenação ou deixa-se à solta o espírito dionisíaco da música? Stanislavski ou Artaud? […] em nosso tempo a Poética de Aristóteles perde singularmente o seu caráter de autoridade tradicional, à maneira como acontecia no passado. (BORNHEIM, 1994, p.62).

Os diversos entendimentos e discussões a respeito da Poética, longe de torná-la irrelevante, nos apontam caminhos de reflexão com o passado, mas também de liberdade interpretativa e criativa. Assim como já existiram diversos modos de fazer teatro, também já existiram outras Poéticas, outras metodologias de análise, outros objetivos. E estas nada apresentam de menor em relação a Aristóteles, pelo contrário, a cada contribuição de novos autores os diálogos se multiplicam, e obtemos um universo rico em perspectivas e diálogos transversais. Essa pluralidade de perspectivas, tão natural do mundo contemporâneo, expande os horizontes de entendimento da cena e da produção teatral, diversificando a estética teatral. Com a ausência de uma autoridade estabilizadora de convenções e regras do teatro, as criações chegam aos limites da cena, e nas palavras de Bornheim “levam constantemente à reinvenção da linguagem teatral”.

Catarse enquanto possibilidade pós-dramática

Conforme proposto por Mattos e Vives (2015), é possível entender que os elementos do teatro pós-dramático apontam e inspiram características essencialmente anti-aristotélicas. Em seu artigo From catharsis to the cathartic: toward a post-dramatic theory of representation, os autores demonstram como a desconstrução dos elementos do drama representativo e psicológico afastam o entendimento de catarse assim como definida por Aristóteles. Para os autores, a mudança formal e estrutural do acontecimento teatral como fenômeno textual (ou formado a partir do texto teatral), para espetacular (enquanto acontecimento cênico) no teatro pós dramático contraria a formulação aristotélica de catarse nascida pelo texto, no sentido da audição. O texto teatral, que foi durante muito tempo o lugar da catarse, é substituído em favor da teatralidade e suas ramificações. Teatralidade essa que era refutada por Aristóteles como capaz de produzir o efeito catártico:

O temor e a compaixão podem, realmente, ser despertados pelo espetáculo e também pela própria estruturação dos acontecimentos, o que é preferível e próprio de um poeta superior. É necessário que o enredo seja estruturado de tal maneira que quem ouvir a sequência dos acontecimentos, mesmo sem os ver, se arrepie de temor e sinta compaixão pelo que aconteceu; isto precisamente sentirá quem ouvir o enredo de Édipo. Mas produzir este efeito através do espetáculo revela menos arte e está dependente da encenação. E os que, através do espetáculo, não produzem temor mas apenas terror, nada têm de comum com a tragédia: não se deve procurar na tragédia toda a espécie de prazer, mas a que lhe é peculiar. E, uma vez que o poeta deve suscitar, através da imitação, o prazer inerente à compaixão e ao temor, é evidente que isso deve ser gerado pelos acontecimentos. (ARISTÓTELES, 1980, p. 81)

Se poderíamos concluir então que não é possível a catarse no teatro pós-dramático, Mattos e Vives (2015) nos trazem a um novo entendimento. Se a catarse enquanto procura do temor e piedade pela representação mimética aristotélica deixa de ser uma preocupação, o catártico, enquanto “excesso” do trabalho da representação, torna-se paradigma. O catártico, conforme teorizado por Naugrette (2011), é aquilo que excede o representacional, envolvendo simultaneamente as identificações referenciais, a linguagem e o corpo. Os autores apontam que a procura do teatro pós-dramático pelo efeito catártico ainda interessa aos criadores da cena contemporânea na forma daquilo que excederia os limites da representação:

We can locate in the post-dramatic production the search of an effect – the cathartic –and not of an identification that magically would carry the public into a vast fusion of affects. By seeking the contrary of such a fusion of consciences (in the sense of the classical aims of the dramatic theatre, originated from the liturgies, the rites and the sacrifices), by searching to disillusion through the exercise of a cynic irony, what is refused is the induction (cathartic, mimetic) of the pity, of the compassion. This requires that the actors would be endangered, exposed in their flesh beyond the conventional exercises and exigencies of the profession, in a direct body proximity, without the protecting connection of the play, of the “as if”… On the other hand, the public can be overturned, displaced, destabilized… sometimes until the limits of the bearable. (MATTOS e VIVES, 2015, p. 7)

Os autores fazem uma interpretação do catártico sob a ótica lacaniana, inferindo-o ao desejo limítrofe e o fim do representacional. A ressignificação do entendimento de catarse no teatro contemporâneo também é pensada por Sarrazac (2012). O autor observa a história da interpretação da Poética e o constante diálogo entre os objetivos da tragédia, contextualizando o pensamento aristotélico na cena pós-dramática:

Entretanto, entre os materiais reciclados pela escrita teatral contemporânea, é possível detectar a presença paradoxal de elementos provenientes do processo catártico: o medo, seguramente, e talvez, mais recentemente, a piedade.

No capítulo 6 da Poética, quando Aristóteles define a tragédia, atribui-lhe um objetivo que é a catarse: “e, representando a piedade e o terror, ela realiza uma depuração desse tipo de emoções”. O efeito específico da representação trágica (“a depuração desse tipo de emoções”) supõe a encenação de duas emoções (“a piedade e o terror”), de que o espectador será depurado. […] Ele as revisita decerto não mais no contexto de uma forma canônica e com um signo catártico, mas segundo estratégias novas no seio de dramaturgias profundamente “não canônicas”. (SARRAZAC, 2012, p. 43)

Tendo essa especulação em mente, podemos observar a proposta do autor do fenômeno catártico ocorrer distante de um modo de representação canônico, pautado na mimese, mas de modo a buscar novas estratégias “não-canônicas” de encenação. O autor demonstra o interesse dos artistas do teatro pós-dramático em repensar o fenômeno catártico, contestando a forma como a catarse ocorre e, portanto, modificando o tipo de experiência proposta, mas ainda intimamente ligado à experiência estética da obra teatral.

A força do processo de significação ganha espaço na poética do pós-dramático, mas em detrimento de uma leitura única. Se, como Sarrazac (2012) teoriza, o terror e a piedade ainda são a base da catarse no teatro pós-dramático, elas agora serão lidas em dramaturgias “não-canônicas”, ou sob uma a nova configuração de elementos que se distanciam de uma estruturação formal, ou ainda são formados pela desestruturação dos elementos formais. Desta forma Sarrazac nos propõe a continuação de uma depuração dos sentimentos de temor e piedade, agora sob um entendimento expandido no teatro pós-dramático.

Ao pensarmos a Poética aristotélica como um modo de interpretar a experiência estética teatral, tentamos nos aproximar dos sentimentos e emoções que causam uma suposta transformação interna, uma afetação ou força transformadora que nasce do contato com a obra e torna a fruição estética em experiência intersubjetiva. Entendendo o fenômeno catártico como elemento sujeito a diferentes interpretações, chegamos à maneira plural com ela pode ser lida no teatro pós dramático, em um terreno movediço de uma teatralidade fragmentada e híbrida, desprovido de estruturas fixas e de natureza volátil. O signo catártico não poderia nascer sob uma forma canônica, mas encontra sua existência de outro modo – com outra finalidade e outro resultado.

 

Referências

ARISTÓTELES, Poética. Trad. de Ana Maria Valente, Lisboa: Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.

BALL, David. Para Trás e Para Frente. Trad. Leila Coury, São Paulo: Perspectiva, 2011.

BORNHEIM, Gerd. A Poética de Aristóteles – Delineamento da Influência Histórica. Na revista O Percevejo, Rio de Janeiro, 1994.

DIB, Narahan. O Teatro experimental da Socìetas Raffaello Sanzio: Percurso e Linguagem. Da palavra-imagem ao corpo palavra. Dissertação de Mestrado – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.

FERNANDES, Sílvia; GUINSBURG, J. O Pós-Dramático: Um conceito Operativo? Coleção Debates, São Paulo: Perspectiva, 2013.

GUIRELLI, Eloá. O Outro. Trabalho de conclusão de semestre para a disciplina Teoria do Teatro II, Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.

LEHMANN, Hans-Thies. O Teatro Pós-Dramático. Trad. Pedro Sussekind. São Paulo: Cosac & Naify, 2011.

MATTOS, Renata; VIVES, Jean-Michel. From catharsis to the cathartic: toward a post-dramatic theory of representation. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/286224196_From_catharsis_to_the_cathartic_Toward_a_post-dramatic_theory_of_representation. Acesso em: 25 de Julho de 2017.

NAUGRETTE, C., “Du cathartique dans le théâtre contemporain”, in Darmon, J.-C. (org.) Littérature et thérapeutique des passions. La catharsis en question., Paris: Hermann, 2011, p. 167-180.

NIETZSCHE, Friedrich. Unzeitgemaesse Betrachtungen. Stuttgart: Kroenner, 1955, p.580.

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SARRAZAC, Jean Pierre. Léxico do Drama Moderno e Contemporâneo. Trad. André Teles. São Paulo: Cosac & Naify, 2012.

SARRAZAC, Jean Pierre. O Futuro do Drama. São Paulo: Cosac & Naify, 1981.

SZONDI, Peter. Teoria do Drama Moderno [1880-1950]. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.

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