Autoria fotográfica: processamentos de sentido

Edição 37 em andamento

Photographic authorship: sense processing

ZAPPE, Camila. Autoria fotográfica: processamentos de sentido. In: Aguarrás, vol. 8, n. 37. ISSN 1980-7767. São Paulo: Uva Limão, JAN/JUN 2021. Disponível em: <http://aguarras.com.br/autoria-fotografica/>. Acesso em: [current_date format=d/m/Y].

Resumo

No decorrer desta escrita desenvolve-se uma reflexão teórica a partir de conceitos atribuídos à questão da autoria na imagem fotográfica. Para isto fizeram-se necessárias reflexões conceituais primeiramente relacionadas a poiética como instauração metodológica. Neste contexto atentam-se às questões emergentes em torno da primeira série fotográfica realizada em pesquisa de tese, uma produção onde meu corpo estava em cena na água. Assumi papel de criadora conceitual e intelectual da imagem, mas não de fotógrafa. Com base em posicionamentos teóricos relacionados a criação, a poética, ao processo fotográfico e a autoria, este artigo buscou criar relações sobre as questões emergentes da pesquisa em arte realizada.

 

Abstract

During this writing, a theoretical reflection is developed based on concepts attributed to the question of authorship in the photographic image. For this, conceptual reflections were first necessary related to poetics as a methodological establishment. In this context, attention is given to the emerging issues surrounding the first photographic series carried out in thesis research, a production where my body was on the scene in the water. I assumed the role of conceptual and intellectual creator of the image, but not as a photographer. Based on theoretical positions related to creation, poetics, the photographic process and authorship, this article sought to create relationships on the issues emerging from research in art.

Palavras-chave: autoria; fotografia; criação; poética.

Keywords: authorship; photography; creation; poetic.

 

 

A criação na pesquisa em arte

Toda pesquisa instaura-se no equilíbrio do senso racional e intuitivo, na soma de consciência e vontade em proveito da solução de um problema. Em arte, o exercício constante de reflexão teórica e prática em torno da pesquisa atuam “não como tradutoras uma da outra, mas como complementares e desveladoras do processo de elaboração da obra” (ZAMBONI, 1998, p. 40). O desenvolvimento de uma pesquisa em poéticas na área das Artes Visuais se edifica concomitantemente em ambas instâncias: prática e teórica.

Neste sentido, Icléia Cattani (2002, p. 42), afirma que os princípios metodológicos que norteiam a pesquisa em artes são fundamentais ao próprio resultado de uma obra, pois é a partir dos processos de desenvolvimento do trabalho que surgem questões a serem aprofundadas. A tese de doutoramento “Fluxos e Refluxos: Água no Contexto Contemporâneo da Arte” edifica-se a partir de reflexões em torno da instauração da poiética como ciência metodológica. A terminologia poiética dissipou-se pela primeira vez a partir da contribuição de Paul Valéry por volta de 1937, o filósofo e escritor defende que a poiética não é o projeto da obra a fazer, nem a obra feita, nem a obra percebida: é o fazer da obra (PASSERON, 1997, p. 107). Por tanto o objeto de estudo de tese, água, adquire sentido a partir das idealizações, investigações e desenvolvimentos que envolvem previamente a constituição da obra finalizada. É no decorrer deste processo de criação que emergem questões conceituais a serem aprofundadas na pesquisa.

Na arte, a poiética detém-se aos estudos em torno da conduta criadora humana, no decorrer de seus estudos Passeron destaca uma definição precisa acerca deste termo. Associam-se a terminologia criação três características específicas, em primeiro momento define-se que esta atividade determina-se à elaboração de um objeto único, mesmo que este artigo seja destinado à multiplicação posterior o atributo de originalidade permanece. A segunda característica reserva-se às relações de diálogo inerentes à obra em execução, e o terceiro item desta lista relaciona-se ao comprometimento de autor para com a obra, pois a atividade criadora é responsabilidade do indivíduo criador, no sucesso ou no fracasso.

Neste contexto metodológico considera-se poiética o que está em obra na obra, como complementa Martin Heidegger “o que está em questão na arte não é a descoberta, mas sim o acontecimento”. O respaldo teórico da poiética na pesquisa em arte busca dimensionar a fundação de uma ciência metodológica que leva em conta as condutas que instauram a obra, e por isto, se exige do sujeito que cria e pesquisa uma atuação dupla: como autor e testemunho. Como declara, Sandra Rey, este processo exige que como pesquisadores, ouçamos e vejamos nossos pensamentos, pois a obra se faz antes de começarmos a fazê-la. A obra atua aqui como processo e processamento (REY, 1996, p. 87). Processo de formação que age no fazer da constituição da obra e processamento de significados.

Concomitante ao pensar e fazer voltado à produção de um objeto, a pesquisa teórica precisa ser desenvolvida, o artista pesquisador precisa, por tanto, iniciar o desenvolvimento prático proposto com sua investigação, refletir sobre tal e extrair dele questões conceituais a serem investigadas. Rey destaca que “toda obra contém em si mesmo sua dimensão teórica” (REY, 1996, p. 89). Por tanto, a metodologia em pesquisa teórica é totalmente baseada nos questionamentos que a obra suscita. Refletindo sobre todas as questões em torno da poética dos trabalhos desenvolvidos no decorrer da tese de doutoramento, atenta-se as questões emergentes em torno da a primeira série fotográfica realizada.

O primeiro mergulho aconteceu em junho de 2019, na piscina do Centro de Educação Física e Desportos da Universidade de Santa Maria. Depois de muito planejamento envolvendo questões de espaço, cenário e vestuário, junto a equipe formada por dois outros pesquisadores, a primeira série fotográfica se materializou na imagem. O desenvolvimento prático foi suscitado de diversas intercorrências, desde o ato fotográfico à pós produção e edição do material. Meu corpo estava em cena na foto e aquele foi um retrato da idealização intelectual de meses de planejamento e pesquisa. Contudo, a falta de experiência e aprofundamento às questões inerentes a primeira experiência de processo fotográfico, se transformaram hoje em tema de estudo desta tese.

Pela primeira vez me coloquei em cena na fotografia, nunca havia estado na posição de idealizadora e realizadora da imagem. Outras pessoas foram necessárias neste processo poético, pois a série fotográfica foi realizada a partir de imagens imersas e submersas. Enquanto meu corpo coberto por um véu se movimentava embaixo d’água contei com o apoio de um colega dentro da piscina para realizar registros áudio visuais e outro do lado de fora. A questão suscitada é: não fui eu quem apertou o botão. O aparato tecnológico teve de ser manipulado por outras pessoas. No que isto implica na autoria das imagens e vídeos?

 

O papel do criador na arte fotográfica

A pauta da criação na pesquisa em arte teve de por mim ser aprofundada. A quem se determina o papel de criador em um processo conjunto, que acontece em equipe? É neste ponto da tese, após o primeiro desenvolvimento criativo, que leituras sobre a poiética de Paul Valéry e Passeron se tornaram essenciais no processo de doutoramento. Foi preciso contextualizar o método de pesquisa, e analisar o processamento da obra. E é justamente sobre isto que se tratam as palavras já escritas neste estudo, sobre o inesperado que surge no decorrer do desenvolvimento da pesquisa em arte. Não basta idealizar, projetar e realizar, a dimensão metodológica desta tese abrange questões respaldadas a cada momento de afastamento e análise dos passos seguidos. Como pesquisadora me coloco aqui, não para obrar, mas para processar a obra. O processamento de sentidos é que enriquece a pesquisa e colabora com o cenário da pesquisa em arte.

Percebo-me, nesta etapa da pesquisa, associando todo aprendizado teórico edificado sobre criação e poiética à esta produção atual. Contudo, outro apontamento conceitual precisar ser trabalhado antes de entrarmos nas questões em torno da autoria da imagem. É necessário que este estudo abranja conceitos inerentes ao processo fotográfico, meio de realização poética desta tese. Grande parcela populacional possui acesso aos aparatos tecnológicos de registro de imagem, seja por aparelhos móveis ou câmeras fotográficas. E se toda pessoa tem condições de produzir uma fotografia, o que nos diferencia como pesquisadores?

A evolução das tecnologias no último quarto do século XX, transformou o aparelho em mercadoria e impôs um novo modelo de circulação das imagens. O maquinário que surgiu a partir da revolução industrial deixou de ser visto como misterioso e inacessível, transformando-se em algo que todos podem adquirir e aprender a utilizar. Desde então, o ato fotográfico atua como um comportamento perceptivo unificador e partilhável, um novo hábito de ordem visual.

Muitos podem obter um aparelho, mas poucos assumem o papel de fotógrafo. Se os dispositivos tecnológicos estão ao alcance de todos, o que difere uma imagem automatizada é seu conteúdo, como expõe Edmond Couchot (2003, p. 155) “não se trata mais de exatamente de imagens, mas de informação”. O acesso difuso nos faz pensar perceber a fotografia como informação, e nos deter no que cada indivíduo captura e partilha. São as intenções que rodeiam o ato fotográfico que diferem as produções contemporâneas. Vilém Flusser (2008, p. 72) ressalta que “o trânsito entre a câmera e o fotógrafo tem por intenção a construção da significação da sua imagem”, a informação contida na imagem materializada por tanto encontra-se na finalidade intencionada pelo fotógrafo.

O registro fotográfico agrega, simultaneamente, produção de sentidos por meio da linguagem e da informação. O condicionamento da imagem fotográfica como signo de representação preserva aos elementos constituintes do ato fotográfico uma condição inerente à informação. A fotografia assume seu lugar na contemporaneidade sob forma de cultura material, desdobrando-se em múltiplas funções, como signo, estética ou documento fotográfico, como expõe Couchot (2003, p. 155) “não se trata mais de exatamente de imagens, mas de informação”. Neste ponto de nossa reflexão, retorno a questão de processamento de sentidos da obra realizada. Mais do que automatizar o processo de captura de cenas do mundo a fotografia retrata a presença do pensamento conceitual abstrato deste ato.

Por mais que a imagem fotográfica seja por excelência multiplicável e responsável por inaugurar a era da reprodutibilidade técnica das imagens, é importante pontuar, a partir do pensamento de Roland Barthes (apud DUBOIS, 1994, p. 72) que “o que a fotografia reproduz ao infinito só ocorreu uma única vez: ela repete mecanicamente o que nunca mais vai poder se repetir existencialmente”. É inexistente a possibilidade de duas fotografias constituírem-se ao mesmo tempo, a partir de um mesmo objeto, através dos mesmos ângulos de enquadramento da imagem, compartilhando a mesma intenção do fotógrafo. Acredito que este seja um dos pontos importantes a serem discutidos. A intenção da imagem fotográfica que compõe a primeira série desta pesquisa, faz parte da criação intelectual da tese em andamento. Perceber a fotografia como informação, faz com que, por mais que seja multiplicável, as intenções contidas na imagem original se mantenham.

Embora eu não tenha assumido o papel de fotógrafa, detenho o poder intelectual da imagem fotográfica. A pesquisa, o planejamento criativo, a direção de arte, a escolha de ambiente, de cenário e composição da imagem, me compete responsabilidade sobre a série fotográfica desenvolvida. Este processamento de sentidos está diretamente relacionado a percepção do trabalho poético após sua realização. A série fotográfica oriunda do primeiro mergulho resultou em mais de 200 imagens e 15 vídeos, após seleção alguns destes registros passaram pelo processo de pós produção e edição da imagem digital. Infelizmente, a questão da autoria se transformou em um tema emergente desta pesquisa, porque duas fotografias foram inscritas em um concurso fotográfico sob o nome de um dos colaboradores daquela tarde de produção. E como reivindicar meu direito a imagem fotográfica se meu corpo está em cena? Como comprovar que detenho o direito intelectual a esta criação?

 

Autoria da imagem fotográfica

Como pesquisadora não poderia prever as resoluções provenientes da primeira sessão fotográfica que compõe minha tese. O que posso é buscar na história da arte fotográfica momentos onde a questão da autoria esteve em pauta e estudar de que forma proceder nas séries seguintes. O conceito de direitos autorais sempre esteve ligado ao reconhecimento da figura do autor. Contudo, a noção de autoria, do termo criação e do próprio papel da fotografia como arte são questões que se transformaram no decorrer do século XX (FABRIS, 2002, p. 59).

A primeira reivindicação da propriedade intelectual de imagem fotográfica é datada em 1857, Félix Tournachon compartilhava sua paixão pela fotografia com seu irmão Adrian, ambos fotógrafos assinavam o mesmo pseudônimo: Nadar. Por meio de uma ação movida contra o irmão, Félix alicerçou o processo sobre a existência de uma diferença entre fotografia técnica e fotografia como arte. Na posição de fotógrafo e artista, Félix, pontuava que sua prática se diferenciava da função de reprodução do real atribuída a fotografia desde 1839.

Outro caso de direitos autorais acontece nos tribunais em 1861. O processo foi aberto por dois franceses Mayer e Pierson, ambos fotógrafos reclamam para si o direito autoral de suas imagens, amplamente reproduzidas por outros profissionais. Até então existia equivalência entre o direito autoral e de propriedade, contudo as leis da época se detinham ao carácter de reprodução, e a fotografia não era amparada legalmente por ainda não ser considerada arte.

A fotografia era tida como fruto de um produto mecânico. No mesmo ano a sentença do processo é desfavorável, e no ano seguinte após recurso é declarada em tribunal a artisticidade da fotografia. A causa foi ganha baseada em conceitos de arte, beleza e verdade, se a imagem fotográfica detinha características e atributos das artes plásticas deveria sim, ser considerada arte. Outro argumento apontado neste caso foi a processo criador, “o fotógrafo, num primeiro momento, compõe uma imagem com sua fantasia; num segundo momento, capta com a câmera o que sua inteligência concebeu e o transmite à obra” (SCHARF, 1974, p. 151). O reconhecimento do caráter criativo desta nova técnica foi imprescindível no ganho de causa.

O reconhecimento da fotografia como uma arte passível de proteção legal de propriedade intelectual foi um dos passos importantes para se estabelecer a nova condição artística mediada pelo aparato tecnológico. No decorrer dos anos o uso instrumental da fotografia foi tido como distinto de sua função como arte. Em termos atuais isto assemelha-se ao que foi mencionado a respeito do uso indiscriminado dos aparelhos de captura de imagem na contemporaneidade. A dimensão industrial acaba por acentuar as diferenças nos tipos de imagens fotográficas no momento que o aparato se torna um mediador dominado por um sujeito ativo.

A legitimidade do ato fotográfico foi de evidente importância e contribuiu no processo de desenvolvimento de uma nova concepção de autoria. A Lei nº 9.610, a mais recente sobre direitos autorais, data 19 de fevereiro de 1998, consolidou na legislação normas para o uso de obras fotográficas. Hoje, em acordo com o Em acordo com o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Território, é garantida por lei proteção sobre obra intelectual.

A retomada das questões em torno de autoria no processo fotográfico, nos fazem perceber que não se pode mais pensar nestas problemáticas em termos propostos pela crítica moderna. No processo de edificação de sentidos provenientes da poética artística desta pesquisa é necessário pontuar estas questões e aproximar outras produções da realidade conceitual desta pesquisa. Em busca de exemplificações que se assemelhem a estes questionamentos, amparo meus estudos em torno da produção de Cindy Sherman, fotógrafa contemporânea. A artista é sua própria modelo fotográfica a mais de 30 anos. Sherman assume diferentes papéis maquiadora, cabeleireira, estilista, modelo e fotógrafa. Diante das câmeras usa fantasias, perucas, adereços e constrói diversas identidades.

Sua produção contemporânea faz do processo fotográfico seu legítimo meio de expressão na arte. Sherman questiona o papel do artista ao se colocar em cena ao mesmo tempo que dirige toda construção poética antes do ato fotográfico. A arte colaborativa presente na contemporaneidade questiona a figura do autor na imagem fotográfica, é necessário pontuar previamente ao desenvolvimento poético o papel que cada integrante deve realizar. O tipo de trabalho artístico contemplado nesta pesquisa pressupõe a presença de outras pessoas em torno do ato fotográfico, contudo isto não me afasta da propriedade intelectual da obra.

A realização artística discutidas aqui, busca na criação, na poética, na fotografia e nas produções contemporâneas, respaldo teórico acerca da autoria da produção prática compartilhada. E a obra, no sentido de obrar, hoje estabelece novas conexões de investigação teórica que auxiliam no entendimento destas questões na arte. A pesquisa em arte pode ser colaborativa, mas sobretudo deve contribuir para que o entendimento destes temas seja esclarecido, através da imagem, do texto e do compartilhamento de conhecimento.

 

Referências

CATTANI, Icleia. Arte Contemporânea: o lugar da Pesquisa. In: BRITES, Branca; TESSLER, Elida. O meio como ponto zero: Metodologia da pesquisa em artes plásticas. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002

COUCHOT, Edmond. A tecnologia na arte: da fotografia à realidade virtual. Ed: UFRGS, 2003.

DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Papirus Editora, 1994.

FLUSSER, Vilém. Ensaio sobre a fotografia: para uma filosofia da técnica. Ed: Relógio D’água, 1998.

FLUSSER Vilém. O universo técnico das imagens técnicas: elogio da superficialidade. Annablume, 2008.

PASSERON, René. Da estética à poiética. Porto Arte, v. 8, n. 15, 1997

REY, Sandra. Da prática à teoria: três instâncias metodológicas sobre a pesquisa em poéticas visuais. Revista de Artes Visuais Porto Arte, v. 7, n. 13, nov 1996

Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Violação do direito Autoral – Fotografia. Disponível em: <https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/direito-facil/edicao-semanal/violacao-de-direito-autoral-fotografia>. Acesso em: 28 Out. 2020.

ZAMBONI, Silvio. Metodologia de Pesquisa em Artes Visuais. In: A pesquisa em Arte: um paralelo em arte e ciência. Campinas SP- Autores Associados, 1998, p. 40.

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