Vida, Morte e Arte

artigos Edição 37

Life, Death and Art

MARTINIANO, Jhonathan Nogueira. Vida, Morte e Arte. In: Aguarrás, vol. 8, n. 37. ISSN 1980-7767. São Paulo: Uva Limão, JAN/JUN 2021. Disponível em: <https://aguarras.com.br/vida-morte-e-arte/>. Acesso em: [current_date format=d/m/Y].

Resumo

Utilizar a Arte para representar a vida e a morte é um desafio que instiga aqueles que desejam sair do senso comum. O objetivo deste artigo é apresentar, a partir de uma revisão de literatura, o relato de experiência do processo de criação de uma obra artística tridimensional. O processo de criação originou uma estrutura que faz alusão ao coração humano. A ideia de reproduzir o coração está no fato deste, simbolicamente, representar o “palco das emoções”, que compõe a bagagem histórica de cada indivíduo. Assim, a vida e a morte dialogam com a representação de um coração humano, visando expressar os sentimentos que, muitas vezes, não podem ser ditos e sim, expressados artisticamente.

Abstract

Using art to represent life and death is a challenge that encourages those who want to get out of common sense. The aim of this article is to present, from a literature review, the experience report of the process of creating a three-dimensional artistic work. The process of creation originated a structure that alludes to the human heart. The idea of ​​reproducing the heart lies in the fact that it symbolically represents the “stage of emotions” that makes up the historical background of each individual. Thus, life and death dialogue with the representation of a human heart, aiming to express the feelings that often cannot be said but expressed artistically.

Palavras-chave: processo de criação, arte, vida, morte.

Keywords: creation process, art, life, death.

 

Introdução

Fazer uso de todas as possibilidades de que a arte dispõe para criar algo é uma responsabilidade tamanha e está longe de ser uma tarefa das mais fáceis. Utilizar a arte para representar a vida e a morte é um desafio que instiga qualquer artista que deseja sair do senso comum.

O objetivo deste artigo é apresentar o meu relato de experiência de todo o processo de criação de uma obra artística tridimensional, concebida a partir de três temas que nortearam seu planejamento e desenvolvimento.

Por meio de uma revisão de literatura, pude tecer o diálogo entra a vida, a morte e a arte, possibilitando a elaboração de um texto estruturado em três tópicos: a arte de representar, a representação da vida e a representação da morte. A ideia é discutir a forma como a vida e a morte podem ser representadas nas artes plásticas.

Para algumas pessoas, é mais cômodo apreciar a arte tida como bela, aquela que agrada e que não gera desconforto algum. É a maneira mais convencional de se ter contato com as manifestações artísticas. Mas há também aqueles indivíduos que se sentem atraídos pela arte que questiona algum contexto, que assusta, que intriga e que rompe as barreiras da moralidade. É a possibilidade que a arte oferece na busca pela expressão de algo.

1 A Arte de representar

A história da humanidade é marcada de significados que foram criados para legitimar os feitos do ser humano. O indivíduo sentiu a necessidade de dar significado às coisas e de se expressar. Surgiu assim a vontade de materializar tudo aquilo que se pensa ou se sente.

Morin (1966)[i] denominou as expressões do ser humano, ou seja, a arte parietal e rupestre, a pintura, a escultura, a música, a mitologia e a fábula como “murmúrios do mundo”, um conjunto complexo de normas, símbolos, mitos e imagens que permeiam o interior do indivíduo e orientam suas emoções.

A arte pode ser aceita como a materialização daquilo que o indivíduo é ou tem dentro de si. Isto possibilita a variedade de significações por parte do artista ou dos apreciadores da arte, envolvidos nesse espaço de troca. Herschel Chipp (1996) afirma que:

Alguns artistas contemporâneos (embora seu número esteja diminuindo) acreditam que as fontes de sua arte estão numa área de sentimentos tão pessoais que nenhuma palavra pode alcança-la, ou então que aquilo que fazem é tão diferente de qualquer coisa feita no passado que nenhum pensamento é capaz de expressa-lo. (CHIPP, 1996, p. 3)[ii]

Dessa forma, a arte dá vida àquilo que é intangível ao indivíduo, que, então, passa a ser denominado artista. O homem que buscou sua imortalidade por meio da exacerbação dos seus sentimentos, da representação e da posterior materialização do seu interior. A representação do real ou do imaginário permite dar sentido ao mundo.

Etimologicamente, a palavra “representação” provém do latim representatio, representationis, que significa fazer presente ou apresentar de novo. Fazer presente alguém ou alguma coisa ausente através da presença de um objeto. Chartier (1991)[iii] defende a ideia de que a representação é o produto que resulta de uma prática. Dessa forma, as artes plásticas podem ser entendidas como uma representação porque são produto de uma prática simbólica.

Na representação, o sujeito encontra reflexos do seu próprio pensar e se permite inventar. Para Bourdieu (apud Pesavento, 1995, p.15)[iv], as representações mentais envolvem a apreciação, o conhecimento e o reconhecimento.

Lucrécia Ferrara diz o seguinte:

Representar é, portanto, tornar o mundo cognoscível e compreensível ao pensamento que é o arquiteto das representações que medeiam as experiências do mundo. Representar é deformar e criar, para o real, mediações parciais, mas reveladoras. (FERRARA, 2002, p. 159)[v]

Os gritos internos do ser humano ecoaram tão alto que foram materializados nos murmúrios de um mundo cheio de possibilidades visuais. A possibilidade de viver ou morrer pela arte, como forma de representar algo e causar algum impacto naquele que a aprecia.

2 A representação da vida

A busca por representar a vida em si através da arte atraiu e ainda atrai o interesse de muitos artistas, que buscam inspiração no próprio ser humano como agente transformador de si mesmo e do meio em que está inserido. Nesse caso, a arte é utilizada para propiciar a melhoria da qualidade de vida das pessoas, seja pela capacidade de despertar o sentimento de pertencimento ou pela possibilidade de contribuir com a ciência.

O trabalho da artista canadense Karina Bergmans é um exemplo interessante da arte usada como ferramenta para despertar o interesse do ser humano pela vida. Sua exposição denominada “Ligaments and ligadures” (Ligamentos e Ligaduras)[vi], que foi exposta na Galeria de Arte da Prefeitura de Ottawa, no ano de 2013, apresentou cores brilhantes, trocadilhos visuais, formas e texturas que estabeleciam uma conexão com a vida real, apontando os pontos fracos e a fragilidade do ser humano.

A artista usou têxteis para criar interpretações literais de determinadas doenças. O uso de tecidos, que lembravam brinquedos e travesseiros, permitiu contemplar doenças e infecções sem causar a repulsa que, convencionalmente, causa mal estar ao público.

Outro exemplo é o da artista e designer irlandesa Sigga Heimis, responsável pela exposição “Glass Organs[vii], trabalho desenvolvido em parceria com o Corning Museum of GlassCMOG, que é o maior museu dedicado à arte vidreira do mundo, situado em Nova Iorque. Em 2013, a produção foi exposta na Designgalleriet, em Estolcomo, Suécia, e levou ao público gigantescos corações, pulmões e cérebros feitos a partir do vidro, com o objetivo de promover a conscientização sobre a doação de órgãos. Desde 2007, a parceria resultou em peças de variados tamanhos, representando órgãos do corpo humano que podem ser doados, como globos oculares, corações, cérebros e células sanguíneas.

O artista brasileiro, escultor e desenhista Nelson Tavares Felix de Oliveira, a partir da década de 1990, passou a produzir volumes esculpidos em mármore e que têm por modelo glândulas ou órgãos do corpo humano, inspirando-se em manuais de medicina. Na exposição “Mesas”[viii], de 1995, realizada na Galeria Luisa Strina, em São Paulo, Nelson Tavares apresentou seis mesas talhadas em granito como se fossem altares e, sobre as mesmas, moldes de partes do seu próprio corpo. A grande dimensão das formas orgânicas e sua aparência expressiva causaram estranheza por parte das pessoas que visitaram a exposição.

A representação da vida por intermédio da arte foi influenciada pelo avanço da tecnologia. Surgiu assim o diálogo entre a arte e a ciência, que permitiu, dentre inúmeras inovações, construir ou restaurar tecidos e órgãos de seres humanos e animais.

Surgiu a chamada Engenharia de tecidos, em 1987, para definir o campo de estudos multidisciplinares que abarca conhecimentos de engenharia de materiais e ciências biomédicas. A matéria-prima desses engenheiros são as chamadas células-tronco, que têm a capacidade de se transformar em células de qualquer tecido do corpo humano e animal.

Neste novo cenário, artistas plásticos passaram a reproduzir órgãos do corpo humano e suas minúsculas estruturas, como os vasos sanguíneos, todos feitos em borracha. Com a coordenação do médico e professor da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE Marcos Lyra, foram criados os Simuladores biológicos[ix], que são bonecos dotados de órgãos semelhantes aos humanos, confeccionados a partir de carne animal.

Os simuladores são modelos de borracha e possuem tamanho, cor, textura e resistência do corpo humano. Eles são usados no treinamento dos estudantes nas cirurgias endoscópicas.

A empresa alemã Karl Storz, fabricante de equipamentos médicos de alta tecnologia, foi a responsável por levar os simuladores para outros países, onde os modelos passaram a ser adotados em substituição aos antigos procedimentos.

Outro avanço que corrobora a estreita relação entre arte e ciências biológicas é a impressão de órgãos em laboratório. Na engenharia de tecidos, cientistas desenvolveram a técnica de impressão de tecido orgânico vivo em impressoras 3D. A técnica é denominada Sistema Integrado de Impressão de Órgãos e Tecidos – ITOP[x] e permite a impressão de cartilagem, osso e músculo. Os pesquisadores provaram que os tecidos impressos podem ser usados em transplantes para a substituição de órgãos ou tecidos orgânicos danificados.

A criação de órgãos biônicos para transplantes é outro exemplo do uso da arte pela ciência para permitir a continuidade da vida. A empresa francesa Carmata apresentou, em 2013, um coração artificial com tecido bovino. O órgão biônico é regulado por sensores, softwares e microeletrônicos e funciona com duas baterias externas de íons de lítio.

Jake Evill, aluno de design da Universidade de Victoria em Wellington, na Nova Zelândia, apresentou também em 2013 um protótipo de exoesqueleto para tratar eventuais fraturas sofridas pelas pessoas.

Batizado de Córtex[xi], a prótese é feita de um polímero de plástico que pode ser molhada ou usada com roupas de manga comprida. A ideia é que o produto seja impresso em 3D com a medida exata para se ajustar a determinado paciente.

Estes são alguns dos muitos exemplos que revelam a capacidade que o diálogo da arte com a ciência tem em materializar o anseio do homem por uma vida mais duradoura. A representação da vida na criação de tecidos e órgãos artificiais, artisticamente elaborados, é uma realidade que impactou positivamente inúmeras pessoas.

É importante ressaltar que a arte, ao representar a vida desta forma, também é atraída pela busca em representar e dialogar com a possibilidade da morte, tema este muitas vezes evitado pelas pessoas devido a inúmeros fatores.

3 A representação da morte

O tema da morte é instigador para os artistas que buscam representa-la em suas obras e, independente da intenção do criador, as criações geralmente despertam a curiosidade por parte do público e apreciadores da arte.

Anteriormente foi dito que um dos papéis da arte é expressar os sentimentos humanos e transmiti-los em forma de representações alegres. Mas por que não imprimir os medos, angústias e anseios obscuros do ser humano?

As manifestações artísticas, os murmúrios do mundo, levam as pessoas a pensar sobre si mesmas e o que as espera, sem hora determinada. E a forma de como encarar isso impulsiona o trabalho de tantos outros artistas. Enquanto a morte não chega, o que é possível fazer para distraí-la e despistá-la?

Talvez a tentativa seja distrair e despistar o próprio medo ou inquietação que o desconhecimento gera em relação à morte. Algumas obras de arte fogem do conceito de retratação da beleza e felicidade e chocam ou causam polêmica por levar o indivíduo a refletir sobre algo que ele tenta esquecer ou não lembrar.

O artista Marc Quinn causou polêmica com a exposição “Eu”, apresentada na Fundação Beyeler, na Suíça, em 2009. Self[xii] é um autorretrato do artista, em que as esculturas são moldes feitos da sua cabeça, compreendendo cerca de cinco litros de seu próprio sangue, mantidos em estado sólido e congelados a -18 graus celsos. Uma peça nova é feita a cada cinco anos, o que dá à obra o caráter cumulativo de tempo e mostra o seu envelhecimento. Ao partir da ideia de usar a escultura para esculpir seu próprio corpo, do seu próprio corpo, Marc questiona o significado da vida; o anseio por uma eternidade após a morte; e a dependência dos seres humanos.

Outro exemplo do diálogo com a morte pode ser encontrado nos trabalhos de um artista espanhol que, ao desafiar os limites do próprio organismo como forma de representação, voluntariamente marca seu corpo como um registro. No caso, o artista é o fotógrafo David Nebreda.

O artista Nebreda sacrifica o seu próprio corpo ao limite da privação alimentar por meio de cortes, furos e costuras na busca da dor para além do limite racional. Ao corpo é negada a possibilidade de ser, que é dada pela alma ou pela identidade. Além dos autorretratos de Nebreda, que gritam: “sou humano”, alguns desenhos pintados com seu próprio sangue são testemunho e trabalho de sua catarse (SANT’ANNA, 2015)[xiii].

Usar o corpo ou partes deste como representação física das suas emoções e vivências é legítimo dos artistas que buscam provocar, no público, a reflexão acerca da condição humana.

O antropólogo David Le Breton (2006, p. 174)[xiv] diz que “A condição humana é corporal” e também que “a presença no mundo se tece na carne.” E o que fica depois que a carne não existe mais? Carolina Junqueira faz a seguinte reflexão a respeito:

Penso no tempo suspenso da morte. Nela, não há presente; há somente futuro e passado. Quando se diz que alguém está morrendo, ele ainda está vivo; portanto, não há morte. A morte, no instante exato em que acontece, já é passado. (DOS SANTOS, 2015, p. 124)[xv]

Representar a morte por meio da arte, dentro de toda a pluralidade que as manifestações artísticas possibilitam, talvez seja uma forma de aceitar o destino no qual todos os seres viventes estão destinados, ou de questioná-lo e desafiá-lo.

Materializar os sentimentos é permitir que parte do artista continue vivo.

Este é o corpo que, não sendo mais encarnado, é constituído por seu rastro, seu vestígio, sua imagem, seu nome, qualquer elemento que restitua alguma corporeidade ao que desapareceu. (DOS SANTOS, 2015, p. 27)

Processo de Criação

No caso específico deste relato de experiência, a concepção da obra artística tridimensional deu-se a partir de três temas e subtemas previamente determinados. Isso possibilitou nortear um caminho a ser seguido no processo de criação. Os temas e subtemas foram os seguintes: o “eu” como extensão de mim; o “outro” a partir do reconhecimento; e o “espaço” como locus de controle.

A partir de uma ideia concebida, fez-se necessária uma pesquisa bibliográfica em busca de embasamento teórico e referências artísticas para cada realização. Dessa forma, pude determinar os materiais que seriam usados e a forma de desenvolver o trabalho.

Desde o início, optei por utilizar os materiais mais simples possíveis e não convencionais. Então, a partir dessa linha de raciocínio, adotei os seguintes materiais: balão de festas nos tamanhos cinco e oito; barbante; cola branca; papel para transparência; papel fotográfico; cola de auto relevo na cor prata; gel para matizar; tinta acrílica na cor dourada e tinta guache na cor vermelha.

Na concepção da obra tridimensional (Figura 1), o barbante foi embebido em uma mistura de cola e água. Após isso, o balão cheio tamanho oito foi besuntado com óleo e envolvido pelo barbante. Após dois dias de secagem, a estrutura feita com o barbante tornou-se rígida o suficiente para manter-se sem o apoio do balão. Algumas partes do barbante foram pintadas na cor dourada. A estrutura foi recheada com bombons e chocolates.

Fig. 1. Autor, escultura O coração como extensão de mim, 2018. Localização, cidade.

Na ressignificação da obra tridimensional (Figura 2), manteve-se a estrutura anterior com algumas modificações. O barbante foi pintado na cor dourada. Fotos dos alunos da disciplina Ateliê Tridimensional, do curso de Artes e Design da Universidade Federal de Juiz de Fora, que foi ministrada no primeiro semestre de 2018, foram coletadas nas redes sociais e dispostas em sequência na representação de um filme antigo para máquina fotográfica. As fotos foram impressas em papel para transparência e papel fotográfico. Este material foi aplicado à estrutura de barbante por meio de cola. Para finalizar, bolinhas foram feitas na estrutura com cola alto relevo.

Fig. 2. Autor, escultura O coração como reconhecimento do outro, 2018. Localização, cidade.

A última ressignificação da obra tridimensional seguiu as mesmas etapas de produção da primeira obra (Figura 3). A diferença foi o uso do balão número cinco e a aplicação da cor vermelha em toda a estrutura. A tinta guache vermelha foi misturada ao gel para matizar com o objetivo de alterar sua consistência. Foram impressos três papeis no tamanho A4 com os dizeres: “Aqui, um coração agoniza. Não deixe o amor morrer!”. Após isso, as duas obras foram espalhadas em dois lugares estratégicos da Universidade Federal de Juiz de Fora, especificamente no Instituto de Artes e Design, e na Faculdade de Engenharia.

Fig. 3. Autor, escultura O coração como locus de controle, 2018. Localização, cidade.

O processo de criação originou uma estrutura de barbante que se mostrou similar ao formato de um coração humano. A partir dessa estrutura, elementos foram omitidos ou acrescentados de acordo com o discurso que foi desenvolvido para cada fase do trabalho.

No primeiro momento, a estrutura do coração foi recheada com bombons e chocolates, que foram distribuídos para as pessoas dispostas a compartilhar da experiência. No segundo momento, foram acrescentados os filmes com as fotos dos alunos envolvidos na parte externa da escultura. Os filmes formaram engrenagens manuseáveis pelo observador/manipulador do objeto.

Na última fase, as pequenas estruturas do coração foram mergulhadas na tinta guache vermelha, dando a impressão de sangue, e foram deixadas em locais de circulação de pessoas com os dizeres: “Aqui, um coração agoniza. Não deixe o amor morrer!”.

A ideia de reproduzir o coração está no fato deste órgão, simbolicamente, representar o “palco das emoções”, a manifestação do amor em todas as suas possibilidades e as emoções que compõem a bagagem histórica de cada indivíduo.

Na primeira obra, o objetivo foi mostrar a “Extensão do Eu” por meio de um coração representativo das emoções do próprio criador da escultura, no caso eu mesmo, possibilitando assim que o coração pudesse ser compartilhado com o próximo. É isto que caracteriza um ser social. O coração traz em seu discurso a importância da possibilidade de participação de artistas plásticos em grupos de pesquisas que desenvolvem alternativas para a questão da doação de órgãos.

Ao compartilhar a experiência em provar o bombom, cada pessoa pôde identificar os sabores emocionais, amargos ou doces, que o artista criador da escultura carrega em sua bagagem afetiva, e que também estão presentes em todas as pessoas, mas de forma diferente. Isto reforça a ideia de que todos os indivíduos se completam, fazem parte de um mesmo ciclo de energia que rege a existência da vida: é devolvida quando a pessoa morre e reaproveitada quando se nasce.

Na primeira ressignificação da obra, o objetivo foi expressar o “Reconhecimento do Outro” e, para isso, utilizou-se a mesma estrutura em formato de coração. A partir do momento em que as pessoas comeram os bombons e compartilharam dos mesmos sabores emocionais, este coração tornou-se um bem coletivo.

O coração é a “máquina” da vida, que faz o sangue bombear por todo o corpo, alimentando-o. Este maquinário foi dotado de engrenagens que, ao serem manipuladas pela pessoa, permitia que esta encontrasse sua foto e se reconhecesse como parte desta máquina alegórica.

Agora cada indivíduo faz parte de um filme, em que todos são atores principais e coadjuvantes. O coração do artista criador da obra incorporou cada indivíduo e se tornou um órgão coletivo, a máquina que projeta o filme da história de cada um interagindo com o próximo.

Na última ressignificação da obra, o objetivo foi associar o “Locus de Controle” com o conceito que cada pessoa tem do “Espaço”. Defendo a ideia de que o locus de controle é representado pela noção da morte, pois é esta que influencia diretamente seu comportamento e a sua capacidade ou não de socializar com o outro.

O psicólogo estadunidense Julian Rotter introduziu o conceito de Locus de controle na Psicologia Social, em 1954. O locus de controle ajuda a entender como uma pessoa percebe seu nível de autonomia sobre os eventos que ocorrem em sua vida. Ele permite explicar o quanto uma pessoa atribui a si mesma ou a eventos externos o controle das coisas que lhe ocorrem. Enquanto as pessoas com locus de controle interno tendem a se responsabilizar mais pela própria vida, as com locus externo procuram culpados (DELA COLETA, 1979)[xvi].

Acredito que o fato de lidar com a iminência da morte reflete naquilo que eu “carrego” em meu coração: o amor. Para mim, é o amor que há de permanecer na memória, quando o corpo material não for mais presente. É o amor que pede ajuda para não morrer enquanto um coração, mesmo que alegoricamente, agoniza no chão.

Conclusão

Observou-se que ao longo da história, o ser humano buscou dar sentido às coisas e se expressar através da materialização dos seus sentimentos. A partir dessa necessidade, o homem buscou representar a vida e a morte por meio da arte.

A arte, ao representar a vida, buscou nas formas do corpo humano a inspiração para influenciar da melhor forma o dia a dia das pessoas, seja por meio da reprodução artificial do organismo ou pela sensibilização quanto a doação de órgãos.

A morte também foi representada usando o corpo humano como inspiração. Nesse sentido, buscou-se expressar sentimentos humanos como: medos, angústias e anseios obscuros do ser humano.

Dessa forma, o processo de criação originou uma obra artística tridimensional que faz alusão ao coração humano. A partir desta estrutura, elementos foram omitidos ou acrescentados de acordo com o discurso que foi desenvolvido para cada fase do trabalho.

Conclui-se, então, que a vida e a morte dialogam com a representação de um coração humano, visando expressar os sentimentos que, muitas vezes, não podem ser ditos e sim, expressados artisticamente.

 

 

Notas

[i] MORIN, E. El espíritio del tiempo. Madrid: Taurus Ediciones, 1966.

[ii] CHIPP, Herschel Browning. Teorias da arte moderna. Tradução Waltensir Dutra et al. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

[iii] CHARTIER, Roger. O mundo como representação. In: Estudos Avançados, Rio de Janeiro, n. 11(5), 1991.

[iv] PESAVENTO, SANDRA J. Representações. Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH/ Contexto, v.15, n. 29, 1995.

[v] FERRARA, Lucrécia D’Alessio. Design em espaços. São Paulo: Edições Rosari, 2002.

[vi]Karina Bergmans. Disponível em: <https://www.karinabergmans.com/ligaments-andligatures-2013/>. Acesso em: 18 de Jun. 2018, as 20h12.

[vii] Sigga Heimis na Designgalleriet Stockholm. In: The Corning Museum of Glass. Estocolmo, Suécia: GlassLab, 2013. Disponível em: <https://www.cmog.org/glasslab/events/siggaheimis-designgalleriet-stockholm>. Acesso em: 18 de Jun. 2018, as 20h21.

[viii] Nelson Felix. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2018. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa9926/nelson-felix>. Acesso em: 18 de Jun. 2018, as 20h.

[ix] A importância dos simuladores cirúrgicos realísticos. In: Pro Delphus. Disponível em: <http://www.prodelphus.com.br/websiteBR/website/company/> Acesso em: 18 de Jun. 2018, as 21h.

[x] Impressão de órgãos em 3D: o futuro dos transplantes? In: Bio em Foco. 14 de Dez. 2017. Disponível em: <http://www.bioemfoco.com.br/noticia/impressao-orgaos-3d-futurotransplante/> Acesso em: 18 de Jun. 2018, as 20h43.

[xi] Jake Evill. Córtex: exoesqueleto protegendo o esqueleto interno. 2013. Disponível em: <https://www.evilldesign.com/cortex> Acesso em: 16 de Nov. 2018, as 23h30.

[xii] Marc Quinn. Diários do Studio: a criação de “Self”. 1 de Jan. 1991. Disponível em: <http://marcquinn.com/studio/studio-diaries/the-making-of-self> Acesso em: 16 de Nov. 2018, as 23h10.

[xiii] SANT´ANNA, Antonio Carlos Vargas. Alma e identidade na obra de David Nebreda. Estúdio, Lisboa, v. 6, nº 11, p. 149-156, Jun. 2015. Disponível em: <http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1647-61582015000100015&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 16 de Nov. 2018, as 23h51.

[xiv] LE BRETON, David. Le cadavre ambigu: approche anthropologique. Études sur la mort, nº 129, p. 79-90, Jan. 2006. Disponível em: <www.cairn.info/revue-etudes-sur-la-mort-2006-1-page-79.htm>. Acesso em: 18 de Jun. 2018, as 21h06.

[xv] DOS SANTOS, Carolina Junqueira. O corpo, a morte, a imagem: a invenção de uma presença nas fotografias memoriais e post-mortem. 2015. Tese (Doutorado em Artes) – Escola de Belas Artes. Universidade Federal de Minas Gerais.

[xvi] DELA COLETA, José Augusto. A escala de locus de controle interno-externo de Rotter: um estudo exploratório. Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 31, nº 4, p. 167-181, Mar. 1979. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/abp/article/view/18248>. Acesso em: 17 Nov. 2018, as 00h10.

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